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Novos Cadernos NAEA

v. 10, n. 1, p. 71-99, jun. 2007, ISSN 1516-6481


Trabalho Escravo nas fazendas do estado do Pará

Luciana Sá Fernandes - Formada em Ciências Econômicas pela UNAMA e Mestre em Planejamento do Desenvolvimento - NAEA/UFPA.

Rosa Elizabeth Acevedo Marin - Professora e pesquisadora do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da UFPA

Resumo Abstract

O artigo reflete sobre uma espécie de racionalidade econômica das formas de trabalho escravo no Brasil contemporâneo. Este sistema de engajamento se sustenta na disponibilidade de trabalhadores, no exercício de ameaças, coerção física e terror. A pesquisa busca estabelecer os nexos entre a expansão do capitalismo no Sudeste paraense, com o aumento de denúncias de trabalho escravo e as políticas governamentais ocorridas no regime militar. A questão examinada diz respeito à conjugação desses elementos e a possibilidade de entendimento da dinâmica do trabalho escravo, prática comum na referida região.

This paper examines a kind of economic rationality of the forms of slave labor in contemporary Brazil. This engaging system is sustained by the availability of workers, by threat, physical coercion, and terror. The present research aims at establishing links between the capitalist expansion in the southeastern State of Pará and the increased number of reports on slave labor and the governmental policies during the military regime. The paper examines the conjugation of these elements and the possibility of understanding the dynamics of slave labor a common practice in that region.

Palavras-chave

Keywords

Trabalho Escravo, Expansão do Capitalismo, Sudeste Paraense, Lucro, Economia Global.

Slave labor, capitalist expansion, southeastern State of Pará, profit, global economy.

 


Luciana Sá Fernandes / Rosa Elizabeth Acevedo Marin

Introdução

Os economistas brasileiros têm sido instados a examinar a história do Brasil para compreender a escravidão, que vigorou por mais de trezentos anos, como um sistema econômico. Essa ênfase nos aspectos econômicos encontra-se nos trabalhos de Weber e Marx, clássicos no estudo da instituição escravista no mundo moderno. Para Versiani (1994), porém, é necessário considerar a moderna análise econômica da escravidão. Certo paralelo pode ser traçado entre a preocupação de Versiani e a que temos em relação aos estudos da escravidão por dívida, identificada em pesquisas realizadas nos últimos vinte anos. Mas esses estudos dificilmente conseguem aprofundar o componente estritamente econômico, que ampliaria a visão do problema social e político.

Na literatura recente, tenta-se verificar se a nova escravidão por dívida traria mais vantagens econômicas para os patrões modernos que a escravidão colonial. Essa hipótese é sustentada pelo sociólogo Bales, que aponta algumas diferenças: a propriedade legal, característica da escravidão colonial, hoje não é mais permitida; no sistema colonial, a compra e a manutenção do escravo eram mais onerosas do que hoje: atualmente, o custo do trabalhador é quase zero, pois apenas é pago o transporte e, em alguns casos, a dívida que o sujeito tinha em algum comércio ou hotel; caso o trabalhador adoeça, é abandonado e alicia-se outro. Segundo Sakamoto (2003), o desemprego proporciona hoje mão-de-obra farta:

Na escravidão contemporânea, não faz diferença se a pessoa é negra, amarela ou branca. Os escravos são miseráveis, sem distinção de cor ou credo. Porém, tanto na escravidão imperial como na do Brasil de hoje, mantém-se a ordem por meio de ameaças, terror psicológico, coerção física, punições e assassinatos.

Os estudiosos da escravidão contemporânea identificam nessa forma de imobilização da força de trabalho mecanismos próprios de recrutamento e seleção de trabalhadores e estratégias particulares de revigoramento em relação às disposições de ordem pública. Diferentemente do que é dito correntemente, a escravidão observada no mundo contemporâneo nem sempre está relacionada com um fazendeiro de mentalidade arcaica, mas geralmente é um processo conduzido pelas grandes empresas capitalistas, empreendimentos privados que tiveram apoio direto ou indireto do Estado. No Brasil, conforme Martins (1995), o revigoramento da escravidão por dívida deu-se com a expansão capitalista na região amazônica durante o regime militar, e tem na dívida o elemento que produz e reproduz o cativeiro do trabalhador (peão) envolvido nessas relações. Existe, portanto, na prática de trabalho escravo uma racionalidade, que decorre da busca incessante de meios para reduzir custos e ser mais competitivo no mercado, cada vez mais moderno e globalizado. Mas existe também uma irracionalidade, que cria empecilhos



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para sua expansão em virtude da não mercantilização de todos os fatores envolvidos, inclusive a força de trabalho.

Embora o trabalho escravo tenha sido identificado em todo o Brasil, a maioria dos casos registrados encontra-se no Estado do Pará (70%), no Maranhão (10%) e no Mato Grosso (10%), conforme dados processados pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) e pelo Grupo Especial de Fiscalização Móvel, do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), no período de 1995 a 2002 (Gráfico 1).

Gráfico 1: Casos Registrados de Trabalho Escravo no Brasil.

Fonte: Grupo Móvel.

No Pará, a maior incidência de casos de trabalho escravo ocorre no Sudeste paraense (Gráfico 2). Por isso, optou-se por enfocar empresas e fazendas instaladas nessa área geográfica que utilizaram tal tipo de mão-de-obra.

Gráfico 2: Concentração do Trabalho Escravo por Região 1995 2002.

Fonte: CPT.

Esta pesquisa buscou os nexos entre as políticas governamentais adotadas no regime militar, a expansão do capitalismo no Sudeste paraense e



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o aumento de denúncias de trabalho escravo. Partimos da hipótese de que a análise da conjugação desses elementos dar-nos-ia subsídios para o entendimento da dinâmica do trabalho escravo, prática comum na referida região.

Por que formas de imobilização da força de trabalho ressurgiram nos anos 60 e quais as circunstâncias históricas que contribuíram para o aumento de ocorrências de trabalho escravo no Pará, o que se reproduz até os dias atuais? Qual a racionalidade econômica que está por trás da prática do trabalho escravo no Pará que possibilita sua reprodução e qual sua relação com o processo global de reprodução do capital?

A análise do processo histórico, social e econômico do capitalismo na região deixa claro que, ao optar pela grande empresa e pela propriedade capitalista da terra, o Estado transferiu, não só grandes extensões de terra, mas também os recursos naturais para o domínio privado. O Sudeste paraense atraiu várias empresas que, ao chegar, confrontaram-se com integrantes de grupos tradicionais (indígenas, coletores de castanha, camponeses, "posseiros") da região, muitos dos quais, por resistirem às expulsões, foram e são mortos. Com a manutenção da estrutura fundiária concentracionista e a conseqüente expropriação, o trabalhador perdeu as condições para o desenvolvimento do seu trabalho e passou a subordinar-se àquele que se denominava proprietário legal da terra. Este, contando com o total apoio do Estado e usufruindo de altas taxas de remuneração do capital, passou a instituir relações de trabalho fundadas na dominação e lançou as bases para o reaparecimento do trabalho escravo.

Por que a imobilização da força de trabalho ressurgiu exatamente nos anos marcados pela modernização?

Segundo Esterci (1994, p. 84), a imobilização da força de trabalho permitia aos empregadores usurpar dos trabalhadores seus direitos e sua identidade de assalariados, baixar o custo da mão-de-obra, garantir certo contingente de mão-de-obra e obter lucros fáceis e imediatos apropriando-se de recursos públicos em terras, obras, créditos e incentivos fiscais.

O Estado é responsável direto pela implantação do sistema repressivo sobre a força de trabalho; outras vezes, sua responsabilidade é indireta, na medida em que implementa políticas que provocam a adoção de práticas repressivas por parte dos empregadores. No primeiro caso, os governos podem assumir, explicitamente, o encargo de sustentar, por exemplo, o regime de trabalho forçado em algum setor da produção, para alcançar os objetivos imediatos de suas políticas; outras vezes, os efeitos das políticas do Estado são indiretos e até, aparentemente, contraditórios (ESTERCI, 1994, p. 81).

A ditadura militar, instaurada em 1964, pôs em prática um amplo programa de ocupação econômica da Amazônia brasileira, em bases supostamente modernas. O objetivo era integrar a Amazônia ao Brasil, ocupando os espaços vazios. Com a ditadura, a correlação de forças alterou-se em favor das classes dominantes. As leis perderam força como instrumento



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de pressão dos trabalhadores, e, com a repressão que se instalou, as medidas desfavoráveis aos grandes grupos econômicos foram-se acentuando, às vezes respaldadas por decretos, às vezes a despeito da legislação existente. Isso atingiu, fundamentalmente, o acesso à terra (CARDOSO; MULLER, 1977; IANNI, 1978 apud ESTERCI, 1994, p. 83).

Loureiro (apud ESTERCI, 1994, p. 104) destacou o favorecimento pelo Estado das empresas e dos grupos econômicos em detrimento da sociedade como um todo, ao mostrar que, "do total de 1.418 projetos incentivados em toda Amazônia Legal, 864 ou 60,93% eram agropecuários, 439 ou 30,96%, industriais e 115 ou 8,11% estavam noutros ramos de atividades. Apenas 166 (11,70%) foram considerados como implantados até 1984".

Paralelamente à falência de grande parte dos empreendimentos econômicos implantados, avançou a grande concentração fundiária provocada pela política social e manteve-se a baixa capacidade na oferta de crédito agrícola para pequenos produtores. A falta de políticas firmes que garantissem assistência técnica e infra-estrutura para os núcleos urbanos que se expandiram, aliada à baixa capacidade dos grandes projetos para gerar empregos permanentes (Tabela 1), provocou uma elevada concentração de trabalhadores nas cidades e o "inchamento" dos velhos e novos núcleos urbanos, onde prolifera conflito de toda ordem.

Tabela 1: Empregos gerados pelos projetos aprovados para a Amazônia Legal, por setor e por unidade federada (dezembro de 1985).

Fonte: Fonte: Grupo de Trabalho criado pela Portaria n.º 11.899/86 da SUDAM. Tabela copiada de Loureiro (2004, p. 280-281).

(1) Informações referentes a 931 projetos dos 959 pesquisados.

A Tabela 1 apresenta o total de empregos gerados por todos os projetos que receberam incentivos fiscais. Se levarmos em consideração apenas as seis unidades integralmente situadas na Amazônia (Amazonas, Rondônia, Roraima, Acre, Amapá e Pará), constataremos que o total de empregos gerados por projetos agropecuários incentivados foi 3.842. Loureiro (2004) destaca que o investimento de recursos a fundo perdido nessas mesmas seis unidades



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foi da ordem de US$ 210 milhões. Quando se considera o número de empregos gerados por esses projetos (agropecuários), nota-se que a criação de cada um desses novos empregos custou em torno de 55 mil dólares. O setor industrial gerou 61.844 novos empregos no período analisado, número considerado baixo, levando-se em consideração que houve investimentos da ordem de 2,2 bilhões de dólares. Vale ressaltar que, desse total, 40.259 empregos, cerca de 65%, foram criados na Zona Franca de Manaus (LOUREIRO, 2004, p. 280-281).

Esse problema agravou-se porque a implantação dos grandes projetos cujo número é reduzido exige um longo período de maturação e absorve relativamente pouca mão-de-obra. Os grandes projetos foram subsidiados por incentivos fiscais e facilidades creditícias e ocuparam grandes extensões de terras, aumentando a concentração de terra regional. Além de tais características, a imigração espontânea para a região intensificou-se, facilitada, entre outros fatores, pela abertura de estradas, conforme já mencionado (CARVALHO; MOREIRA; VALE, 1979, p. 240).

Ao viabilizar esse tipo de ocupação e de exploração da Amazônia, o Estado acabou transferindo a posse da terra das populações tradicionais e trabalhadores migrantes sem terra para os grupos econômicos, o que implicava também a apropriação privada dos recursos naturais pelo capital. Os novos investidores sentiram-se encorajados a fazer aplicações em áreas onde o fraco desenvolvimento tecnológico e organizacional da mão-de-obra permitia uma elevada taxa de exploração da força de trabalho, instituindo formas e relações de trabalho fundadas na dominação, como a peonagem, que se estabeleceram sob a influência desses capitais (LOUREIRO, 2004, p. 107). Segundo Loureiro, "a forma como se vem processando a expansão do capital na Amazônia (com o apoio do Estado ao capital, altas taxas de remuneração do mesmo e superexploração do trabalho humano), abriu caminho para o reaparecimento do trabalho escravo" (LOUREIRO, 2004, p. 256).

No mesmo período, houve várias denúncias de utilização de trabalho escravo. Segundo Martins (1995), no período de 1970 a 1993, houve denúncias de ocorrência de trabalho escravo em 431 fazendas, das quais 308 estavam situadas na Amazônia e as demais, em outras regiões do país. Especificamente nas fazendas, foi estimado que, somadas as denúncias de diferentes épocas, houve pouco mais de 85 mil trabalhadores escravizados, número que, segundo o próprio autor, é muito inferior ao real, visto que se baseiam somente nas fazendas denunciadas (MARTINS, 1995, p. 89-112).

Martins (1981, p. 21) ressalta que, embora num primeiro momento o movimento pareça contraditório, as contradições fazem parte do processo de reprodução ampliada do capital:

A produção capitalista de relações não-capitalistas de produção expressa não apenas uma forma de reprodução ampliada do capital, mas também a reprodução ampliada das contradições



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do capitalismo o movimento contraditório não só de subordinação de relações pré-capitalistas, mas também de criação de relações antagônicas e subordinadas não-capitalistas. Nesse caso, o capitalismo cria a um só tempo as condições da sua expansão, pela incorporação de áreas e populações às relações comerciais, e os empecilhos à sua expansão, pela não mercantilização de todos os fatores envolvidos, ausente o trabalho caracteristicamente assalariado. A primeira etapa da expansão do capitalismo é a produção de mercadorias e não necessariamente a produção de relações de produção capitalistas. O processo que institui e define a formação econômico-social capitalista é constituído de diferentes e contraditórios momentos articulados entre si: num deles temos a produção das mercadorias e a produção da mais-valia organizada de um modo caracteristicamente capitalista, dominado pela mais-valia relativa, num outro temos a circulação da mercadoria, subordinada à produção. Mas esses momentos estão articulados entre si num único processo, embora possam estar disseminados por espaços diferentes.

Segundo Martins (1995), o processo de expansão territorial do capital e sua extensão às atividades agropecuárias apoiou-se "em incentivos fiscais e subsídios governamentais de um lado e, de outro, no uso não-capitalista da mão-de-obra necessária à fundação do novo empreendimento". Nesses casos, a reprodução ampliada do capital, inclui a produção não-capitalista de capital.

Segundo dados da CPT, desde a década de 70, há notícias de trabalho escravo em fazendas na Amazônia. Quando o governo militar forneceu subsídios a grandes empresas da Amazônia, estimou-se em 100 mil o número de trabalhadores escravizados, por ano, até a década de 80 (CPT, 2003).

Por que os empreendimentos modernos utilizam-se da escravidão por dívida e que lógica econômica desses agentes depreende-se dessa estratégia aplicada na região?

As razões e os efeitos do recurso à imobilização da mão-de-obra podem parecer óbvios em determinadas circunstâncias: garantir um certo contingente de trabalhadores em situações (permanentes ou temporárias) de escassez de mão-de-obra e forçar a trabalhar pessoas que, com a opção de trabalhar por conta própria, não se disporiam livremente a abrir mão de sua autonomia. Para empregadores e histórias oficiais, a imobilização, nesses casos, decorreria da necessidade de "disciplinar" a força de trabalho. Outras vezes, no entanto, a imobilização pode explicar-se, simplesmente, pelo objetivo dos empregadores de baixar o custo da mão-de-obra (ESTERCI, 1994, p. 20).

Esterci ressalta que processos de transformação não são lineares. Padrões de exploração diversos ocorrem simultaneamente, "relações paternalistas e formas de imobilização da força de trabalho convivem com relações contratuais e não são necessariamente opostas à modernização na produção" (ESTERCI, 1994, p. 79). Segundo a autora, o que parece ser uma contradição é a regra



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em processos de acumulação e implantação de certos modelos de desenvolvimento, formas repressivas de extração de trabalho ocorrem com freqüência em economias avançadas, surgem ou expandem-se em momentos de modernização ou de reestruturação da economia. Não se pode, pois, acreditar que essas formas violentas de imobilização da força de trabalho sejam fruto de agentes atrasados do capitalismo selvagem. Basta examinar a história moderna:

no curso da formação do mercado de trabalho livre, [...] quando os trabalhadores rurais começavam a exercer sua liberdade de movimento ou seu poder de negociação no sentido de assegurar [...] salários mais altos, melhores condições de trabalho, jornadas mais curtas etc., [...] o capital procurou trazer a si o domínio sobre o lugar de trabalho, alterando o equilíbrio de forças em seu próprio benefício, de novo restringindo a mobilidade da mão-de-obra (BRASS, 1980, p. 51 apud ESTERCI, 1994, p. 79-80).

O mesmo grupo econômico nacional ou internacional que adota técnicas sofisticadas e contratuais na exploração do trabalho em São Paulo ou nas grandes cidades européias utiliza a violência do jagunço, sobrepõe o poder privado ao poder público, para expropriar o "posseiro" na Amazônia, e até mesmo emprega o trabalho escravo para abrir fazendas. Lúcio Flávio Pinto (1992, p. 102) ratifica essa hipótese:

Se a Volkswagen vem para a Amazônia, ele pratica trabalho escravo; na Alemanha ela não patrocina; lá em São Paulo, também não. Os grandes fazendeiros de São Paulo, os quatrocentões, em São Paulo, conhecem arte, são gourmets, falam várias línguas. Na Amazônia eles falam a língua do 38.

Para Martins, a questão agrária brasileira tem duas faces combinadas: a expropriação e a exploração, que são processos simultâneos. A expropriação é a "instauração do divórcio entre o trabalhador e as coisas de que necessita para trabalhar, a terra, as ferramentas, as máquinas, as matérias-primas". O autor ressalta que a expropriação constitui uma característica essencial do capitalismo, é um componente da lógica da reprodução do capital. O capital só pode crescer, só pode reproduzir-se, à custa do trabalho, porque só o trabalho é capaz de gerar riqueza. Por isso, a lei básica do capital é subjugar o trabalho. Para que o capitalista possa colher os frutos do trabalho alheio, ele tem de separar o trabalhador dos seus instrumentos de trabalho, para evitar que o trabalhador trabalhe para si mesmo, isto é, para evitar que deixe de trabalhar para o capitalista. Criam-se assim as condições sociais para que esse mesmo capital passe ao segundo turno, que é a exploração do mesmo trabalhador que já foi expropriado. Para trabalhar, terá de vender a sua força de trabalho ao capitalista, segundo regras de mercado e não conforme as suas necessidades reais (MARTINS, 1991, p. 50-51).



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Na Amazônia, esse processo foi conduzido diretamente por grandes empresas capitalistas, com amplos incentivos fiscais do próprio Estado: a fundação das fazendas na Amazônia era o meio de se obter os recursos dos incentivos fiscais, mas dependia de mecanismos arcaicos de exploração do trabalho e acumulação do capital.

Foi no Estado do Pará que esse tipo de relação de trabalho predominou, e até hoje o Pará é a região com maior índice de uso de mão-de-obra escrava. Tal problema está relacionado com a expansão capitalista que se tem acentuado na região a partir principalmente dos anos 70:

No Pará, onde a incidência de trabalho escravo é superior a qualquer outro, entre 1964 e 1988, foram registrados 55 casos de imóveis envolvidos com trabalho escravo. Estava a quase totalidade sob a categoria de fazendas agropecuárias (52 imóveis, 1 garimpo,1 indústria madeireira e 1 registro numa área do Projeto de Colonização Tucumã). Esses registros informam que dos 55 imóveis, em 37 (67%) dos casos era desconhecido o número de envolvidos, enquanto os 18 outros somavam 1.604 trabalhadores submetidos ao trabalho escravo. Quando se rebelam e não conseguem fugir, esses trabalhadores são torturados. Assim sendo, das 529 pessoas que tiveram suas mortes registradas em conflitos de terra no Pará, 38 morreram sob tortura em cativeiro (IDESP. Pará Agrário. Conflitos Agrários (Edição Especial) p. 32-33 apud LOUREIRO, 2004, p. 258).

Qual a relação entre a política governamental do período, a expansão capitalista no Pará e o uso de mão-de-obra escrava?

Tabela 2: Estabelecimentos rurais do Estado do Pará, segundo a área (1960/1970).

Fonte: Censo Agropecuário do Brasil, 1995-1996, nº. 5, Pará.

Quando o governo decidiu estender os incentivos fiscais à agropecuária e também computar o valor da terra e da mata nativa existente como recurso próprio das empresas que pleiteavam os incentivos fiscais, provocou, entre



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outras conseqüências, a corrida por grandes áreas de terra, pois quanto maior o lote de terra, maior o incentivo fiscal e menor o preço de compra por hectare (LOUREIRO, 2004, p. 91), o que aumentou ainda mais a concentração de terra, conforme mostram os dados das tabelas 2, 3 e 4.

Tabela 3: Estabelecimentos rurais do Estado do Pará, segundo a área (1975/1980).

Fonte: Censo Agropecuário do Brasil, 1995-1996, nº. 5, Pará.

Tabela 4: Estabelecimentos rurais do Estado do Pará, segundo a área (1985/1995).

Fonte: Censo Agropecuário do Brasil, 1995-1996, nº. 5, Pará.

A análise das tabelas 2 e 3 revela a acentuação da concentração de terras nos extremos da riqueza e da pobreza no Pará entre 1960 e 1980. Enquanto, em 1960, havia apenas 33 estabelecimentos rurais com mais de 10.000 hectares, em 1980, o número de tais estabelecimentos chegava a 199, que se apropriavam de 35,72% das áreas existentes. Por outro lado, em 1960, os produtores com menos de 10 hectares de área por lote repartiam 2,5% da área existente entre si; já em 1980, tais produtores haviam aumentado para 81.048, repartindo, porém, entre si somente 1,55% da área.

A comparação da evolução da distribuição dos estabelecimentos rurais por classe de tamanho entre 1970 e 1995 permite-nos constatar que, muito



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embora tenha havido mudanças no padrão de distribuição de terras dentro de alguns grupos de área, essa distribuição continuou altamente concentrada. Por exemplo, os estabelecimentos com menos de 100 hectares, representando 94,5% do total das unidades, controlavam 21,2% da área; em 1995, 82,1% de tais estabelecimentos controlavam 19,2% da área. No outro extremo, o dos estabelecimentos com 1.000 ha e mais, em 1970, apenas 0,8% do total de estabelecimentos controlava 64,2% da área total; em 1995, os estabelecimentos desse grupo representavam 1,1% de todas as unidades e detinham quase 51% da área total.

Nesses números vemos o reflexo da desigualdade estabelecida desde a base da sociedade brasileira. Se, por um lado, são transferidos ao domínio privado grandes recursos e áreas (adquiridas por licitações a preços simbólicos, incentivos fiscais, apoio institucional e isenções), por outro, o acesso à terra é negado aos pequenos produtores, que são expropriados da terra por não terem titulação e vêem-se obrigados a deslocar-se para áreas cada vez mais distantes e pioneiras.

O homem perde neste processo as condições objetivas de desenvolvimento de seu trabalho, antes garantidas pela exploração direta da natureza. Agora passa a fazê-lo intermediado pelo proprietário legal das terras, a quem se subordina. A nova organização implica não apenas a apropriação e exploração da natureza pelo capital mas, também, a exploração do trabalho, agora condicionado, posto que o homem perde sua terra, onde antes desenvolvia um trabalho autônomo (LOUREIRO, 2004, p. 171).

No Pará, o Sudeste foi a região escolhida pelos grupos que vieram atrás de terras, em razão da sua proximidade da Belém-Brasília, da qualidade das terras e das riquezas minerais e florestais. Além dos incentivos fiscais, fins especulativos atraíram a atenção para o Sudeste paraense, o que desencadeou uma corrida às terras marginais, que rapidamente se esgotavam. Modificando completamente o valor da terra, conforme explicou Pinto (1992, p. 27):

No começo da década de 60, um hectare de terra na rodovia Belém-Brasília custava entre 7 mil e 12 mil cruzeiros (valor da época). Com a exploração de apenas 20 espécies florestais comerciáveis da floresta, o comprador poderia ganhar 40 vezes mais do que havia pagado pela terra (entre 550 mil e 600 mil cruzeiros). Podia dar-se ao luxo de queimar a maior parte das árvores, extraindo apenas as de valor mais alto graças a essa excepcional rentabilidade propiciada pelo "valor da terra nua".

No Sudeste do Pará, os municípios de Conceição do Araguaia e Santana do Araguaia atraíram muitas empresas; entre 1966 e 1983, a maior parte dos projetos aprovados até então para a Amazônia pela SUDAM foi para essa



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região. Convém lembrar que, dos 72 projetos aprovados nesse período no Estado do Pará, 62 concentravam-se na região do Araguaia. Nos mesmos municípios instalaram-se dois tipos de empreendimentos agropecuários. O primeiro era composto por empresas mais conhecidas por suas atividades na área financeira Bradesco, Bamerindus, Mercantil e Atlântica Boa Vista , na área industrial Óleos Pacaembu, Nixdorf, Volkswagen, Manah, Supergasbrás , no setor de construção Cetenco Engenharia S/A, Encol, Andrade Gutierrez e no setor madeireiro Madeireira Agropecuária S/A e Paragarças, ambas em Santana do Araguaia. O Bradesco, as fazendas Renidas Taine-Rekan e a Cia. Agropecuária do Rio Araguaia (Capra) instalaram-se, respectivamente, em Santana e em Conceição do Araguaia; a Atlântica Boavista, as fazendas Rio da Prata, em Santana do Araguaia; a fazenda Rio Dourado, em São Félix do Xingu; a Maginco, as fazendas Mogno, em Rio Maria; a fazenda Morada do Sol, em São Félix do Xingu (REZENDE, 2004, p. 106).

Outro tipo de empreendimento agropecuário implantado na região era composto por empresas familiares, como os membros das famílias Lunardelli, Barbosa, Mutran, Bannach, Quagliato, Avelino, Andrade, Pires, José Coelho Vítor, Maurício Pompéia Fraga, possuidores de 47 fazendas (REZENDE, 2004, p. 106).

Havia agentes econômicos concorrendo para entrar no ramo da pecuária, porque a demanda de subsídios por parte do governo era grande. Não por acaso, é nessa mesma região que se registrou o maior número de denúncias de trabalho escravo. O modelo de desenvolvimento adotado foi criado para gerar exportações, pagar dívidas externas e estimular a economia regional. Tudo isso requeria grande contingente de mão-de-obra.

Fazenda formada com incentivos fiscais, na área da SUDAM, mantém 1.200 empregados em regime de trabalho escravo, sem pagar os salários contratados. [...] Era um verdadeiro campo de concentração, onde centenas de homens vivem em completa escravidão, diz a Polícia Federal (JORNAL DO BRASIL, fev. 1971 apud ESTERCI, 1994, p. 25).

Quando fazemos uma análise histórica da ocupação dessa região de fronteira pelas empresas capitalistas do Centro-Sul do país, facilitada pela intervenção pública, constatamos que essa ocupação insere-se em um processo mais amplo de acumulação e concentração do capital, inclusive em termos espaciais. Os campos e matas do Araguaia paraense representavam novas oportunidades de investimento para o capital privado e, portanto, novas oportunidades para a valorização do capital empresarial por meio da expansão de atividades produtivas, subsidiadas pelo Estado (por meio dos incentivos fiscais, da venda das terras públicas a preços nominais, da abertura da estrada), ou simplesmente por meio da especulação com o valor da terra, que estava concentrada principalmente na grande propriedade (SILVA, 2005).



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A lógica da acumulação e da concentração do capital e da terra era totalmente diferente. Outrora o trabalhador utilizava a terra para cultivá-la e dali tirar o seu sustento e o da sua família; com a transformação da terra em mercadoria e a destruição do modo de vida camponês, o ritmo da exploração passou a ser ditado pela lei de acumulação capitalista e a terra passou a representar uma fonte de lucro.

No entanto, a rápida acumulação do capital tem seu preço. A opção pela grande empresa, pela propriedade capitalista da terra e a manutenção da estrutura fundiária concentracionista também têm gerado resultados contraditórios que se estendem aos nossos dias. Basta observar o grande número de conflitos relacionados à posse de terras. Existe uma relação direta entre o aumento da ocupação empresarial e o aumento dos conflitos, muitos deles fatais, pois violências de toda sorte são cometidas com o intuito de expulsar os moradores e assegurar a terra.

Tabela 5: Mortes relacionadas com posse e exploração da terra no Estado do Pará - Quantidade de vítimas por mesorregião.

Fonte: Governo do Estado do Pará- Secretaria Especial de Estado de Defesa Social

De acordo com o inventário de registros e denúncias de mortes relacionadas com a posse e a exploração da terra no Estado do Pará (1980/2001), houve o registro de 861 mortes, em 597 episódios que envolveram



Luciana Sá Fernandes / Rosa Elizabeth Acevedo Marin

adultos e crianças, homens e mulheres, entre posseiros, trabalhadores rurais, invasores, fazendeiros, pequenos proprietários, policiais, líderes sindicais, religiosos, empregados de fazenda, pistoleiros e outros. Na Tabela 5, os dados foram tabulados por ano, local do episódio (mesorregião) e número de vítimas, para permitir uma melhor visão espacial do problema.

A análise das mortes relacionadas com a posse e a exploração da terra no Estado do Pará (1980/2001) e em suas respectivas mesorregiões mostra-nos que 1,05% dessas mortes ocorreu no Baixo Amazonas, 0,46%, no Marajó, 1,05%, na região metropolitana de Belém, 9,18%, no Nordeste paraense, 86,53%, no Sudeste paraense e 1,74%, no Sudoeste paraense.

No Sudeste paraense, os conflitos são mais acirrados e violentos, conforme indica o número de 745 óbitos no período analisado. Em todos os anos, no período de 1980 a 2001, houve o registro de no mínimo 11 mortes (1989), com média de 65 mortes por ano. O ano de 1985 apresenta certas especificidades: primeiramente, porque marcou o fim do governo militar e a conseqüente abertura política do país; segundo, porque apresenta uma alarmante estatística de 116 registros de mortes, o que corresponde a 13,47% do total de mortes no Estado do Pará no período analisado (1980/2001). Dessas mortes, 87,07%, ou seja, 101 ocorreram no Sudeste paraense. Entre 1985 e 1988, os conflitos acirraram-se, e nesse período registraram-se 281 mortes, ou seja, 32,64% do total, com uma média de 70 mortes por ano. Novamente chama a atenção o Sudeste paraense, que concentra 79% de ocorrências, com 222 registros de mortes, seguido do Nordeste paraense, com 43 mortes. De 1989 a 1995, nota-se certa "tranqüilidade", havendo uma média de 17 mortes por ano. A partir de 1996 até 2001, os conflitos voltam a tomar fôlego, sobretudo no Sudeste paraense, em que ocorrem 94,77% das mortes registradas no período. De fato, das 306 mortes registradas nesse período, 35,54%, ou seja, 290 ocorreram no Sudeste paraense, com uma média de 51 mortes por ano.

Alfredo Wagner (1991), analisando a dinâmica dos conflitos agrários, constata que, tanto no período militar quanto nos anos de transição democrática, o Estado tratou as questões relacionadas aos conflitos e à violência no campo, principalmente em área de fronteira, como parte da tecnocracia estatal. Não priorizou efetivamente o controle dos confrontos endêmicos do interior da fronteira amazônica, considerando-os até mesmo como fatores inerentes à modernização da agricultura.

Interpreta-se de maneira naturalizada o acirramento das tensões sociais e dos confrontos no endosso tácito à concentração fundiária sob o ditame da força bruta e da coerção. A subjugação pela violência, de diferentes segmentos camponeses denominados regionalmente de posseiros e peões, e de diversos grupos indígenas, não obstante provocar declarações públicas de indignação moral, manifesta-se implicitamente, nos meandros desta lógica, como um "fato necessário" e peculiar aos processos



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econômicos e às estruturas políticas de uma situação de fronteira, delineando-se numa constante observável tanto em períodos explicitamente ditatoriais (1964-85), quanto em conjunturas definidas como de "transição à democracia" (1985-89) (ALMEIDA, 1991, p. 263).

Entender tais confrontos e tensões implica a aceitação de que são provocados pela desigualdade na distribuição de terras (ver tabelas 2, 3 e 4) e de crédito, perpetuando a situação de pobreza e de falta de oportunidade, de um lado, e a concentração de terras, do outro. Pelas razões já mencionadas, o Sudeste paraense atraiu várias empresas. À medida que aumentava a apropriação de terras pelo capital, aumentava também a resistência à expulsão por parte dos habitantes naturais, que lutavam para permanecer na área. Uma das conseqüências dessa luta são as mortes (ver Tabela 5).

A violência recorrente no interior da Amazônia, sobretudo na área investigada o Sudeste paraense , é simultânea ao processo de expansão territorial capitalista e de expropriação de terras que acompanha o avanço da fronteira. Tais situações explicam as migrações, o abandono da terra por camponeses, a fuga de áreas em exploração, de serrarias e carvoarias. Trata-se de um conjunto de fatores que, aliados às limitações estruturais, alteraram as condições de vida dos trabalhadores, tornando-os frágeis em relação à prática da escravidão recriada no Brasil moderno.

Conforme Marin (1988), "o contratante age para coagir, suprimir a vontade e liberdade de ir e vir do trabalhador; impõe um acordo ou dívida, significando a negação absoluta de regras contratuais mínimas, estabelecidas sempre unilateralmente". Trata-se de atos de violência camuflados. Acrescenta Marin (1988) que é importante associar a continuidade desse regime de trabalho à persistência de um sistema de concessões de terras que é extremamente excludente e conservador, o que, segundo a autora, "reedita uma elite de proprietários da terra e determina a persistência de problemas agrários e conflitos fundiários graves".

O princípio da subordinação dos camponeses por atos coercitivos e por atividades diversas de banditismo e pistolagem mostra-se historicamente co-extensivo à consolidação dessa grande propriedade territorial fundada num acesso aos meios de produção pela destruição dos sistemas de apossamento preexistente e na adoção de mecanismos de imobilização, como a peonagem da dívida, que configuram modalidade extrema de repressão da força de trabalho (ALMEIDA, 1991, p. 263).

A seguir, apresentamos os municípios que lideram o ranking de casos de trabalho escravo no Estado do Pará, no período de 1995 a 2002, segundo dados da CPT.

Uma análise mais aprofundada revela que a região do Sudeste paraense foi a que mais atraiu empresas e particulares para a Amazônia a partir do



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final da década de 60 para aí desenvolverem atividades agropecuárias e, ao mesmo tempo, a que concentrou a maior parte dos projetos aprovados pela Sudam para a Amazônia. Essa mesma região foi e continua sendo palco dos maiores conflitos de terras, com mortes, e não é mera coincidência o fato de que até hoje aí se registram as maiores incidências de trabalho escravo do Brasil. Isso tudo em decorrência da política do governo de confiar aos empresários o papel de desenvolver a região, deixando-os livres para inserirem as relações contratuais no jogo do mercado e exonerando-se da responsabilidade do sistema injusto e violento implantado.

Gráfico 3: Trabalhadores Escravos e sua localização no Estado do Pará.

Fonte: CPT/ 1995-2002.

A lógica do Trabalho escravo

As unidades que usam trabalho escravo estão sobretudo localizadas em ambientes rurais. No ano de 2003, segundo dados da CPT (2003), foram denunciadas formas contemporâneas de trabalho escravo em 238 imóveis rurais, sendo 1 em São Paulo, 4 respectivamente em Rio de Janeiro e em Rondônia, 5 na Bahia, 22 em Tocantins, 23 no Mato Grosso, 30 no Maranhão, 149 no Pará, o que totalizava 8385 trabalhadores "reduzidos à condição análoga à de escravos".

Embora a maioria dos casos ainda se concentre nas regiões Norte e Centro-Oeste, as estatísticas apontam para um aumento no número de Estados e regiões onde foram encontrados trabalhadores em "condições análogas à de escravos". Observou-se um crescimento significativo do uso de mão-de-obra escrava em Rondônia, no Tocantins e no Maranhão, e o Estado do Rio de Janeiro e o da Bahia entram novamente nessas estatísticas:



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A grande predominância das denúncias recai sobre as fazendas ligadas à pecuária, principalmente nos serviços de roço de pastagens e ainda nos de desmatamento, feitura de cercas e pulverização de herbicidas. Estas atividades ocorrem principalmente nas regiões Norte e Centro- Oeste, que continuam liderando o número de casos de trabalho escravo.

Com relação aos casos observados, gostaríamos de destacar uma característica muita significativa, que é o isolamento geográfico. Aliás, o fator geográfico é crucial para entender por que essa situação se perpetua na Amazônia e sobretudo no Pará. Podemos observar que as distâncias percorridas até chegar à sede da fazenda são enormes e os locais são de difícil acesso, isso por si só favorece a escravidão, uma vez que os trabalhadores não dispõem de meios de comunicação, nem de meios de transporte.

A fazenda Uruará, por exemplo, localizada no município de Uruará, fica a 150 km do município mais próximo. Ela foi fiscalizada em março de 2005, a ação foi iniciada com a fuga do trabalhador Sebastião Almeida de Souza e seu relato à Promotora de Justiça da Comarca de Uruará, que solicitou a expedição de um mandado de busca e apreensão.

Entre outras coisas, constatou-se: empregados sem registro, empregados contratados sem carteira de trabalho e previdência social (CTPS), não pagamento de salários, não recolhimento do percentual do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), contratação de empregados com idade inferior a 18 anos em atividades e locais insalubres ou perigosos, contratação de empregados com idade inferior a 16 anos, não realização de exames médicos por ocasião da admissão, falta de condições de higiene e conforto por ocasião das refeições, não fornecimento de equipamento de proteção individual (EPI) gratuitamente aos trabalhadores, não fornecimento de alojamento com adequadas condições sanitárias, falta do material necessário à prestação de primeiros socorros e não fornecimento de água potável em condições higiênicas.

O proprietário é o Sr. Vicente Nicoladi, natural do Rio Grande do Sul. Na fazenda eram desenvolvidas as atividades de desmatamento e brocagem das terras para a formação de pasto ou para a atividade agrícola, não sendo possível definir a real atividade econômica da área, uma vez que não foi comprovada a posse da terra pelo proprietário.

José Alves de Brito, referido no processo como o gato Zé Índio, era o responsável pelo recrutamento dos trabalhadores e prometia pagar R$ 300,00 por alqueire para cada trabalhador. Conforme já mencionado, a fazenda ficava a uma distância de 150 km de Uruará, e os empregados não tinham como voltar para suas casas. Zé Índio obrigava-os a pagar pelo frete do veículo que os levava à fazenda e a comprar os instrumentos de trabalho, como motosserra, botas, foice, facão, lima, a preços elevados. Ele só fornecia como alimentação arroz e feijão e também cobrava um preço elevado. Os empregados trabalhavam das 7 às 17 horas, de segunda a sábado; quando adoeciam, não



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podiam ser transportados para Uruará, pois não havia carro, nem ser tratados, pois não havia medicamentos.

O isolamento geográfico facilita a manutenção de tal situação por vários motivos: os trabalhadores são normalmente arregimentados em outras localidades e, por não conhecerem a região, têm mais dificuldade para fugir; estando longe de seu meio social (parentes, amigos), têm menor capacidade de se defender. A análise dos relatórios de fiscalização revela que, na maioria dos casos em que houve denúncias, o que possibilitou a ação fiscal foi a denúncia dos moradores locais, que conheciam a região e conseguiam fugir e buscar ajuda na CPT ou recorriam à Justiça. Esse fato é corroborado pela estatística da CPT, a qual revela que 50,2% das denúncias de trabalhadores em situação de escravidão, feitas no período de 1996 a 2004, partiram de trabalhadores do Pará.

Segundo nosso entendimento, a combinação desses dois elementos (migração e isolamento geográfico) perpetua o cativeiro dos trabalhadores, que, por não conhecerem a região, têm mais dificuldade de fugir e denunciar a situação a que foram submetidos. Além disso, as longas distâncias e o difícil acesso dificultam a ação coercitiva do Estado, pois, se o trabalhador não consegue fugir e denunciar, dificilmente a propriedade será fiscalizada, ou seja, na imensidão da floresta, a possibilidade de ter uma fiscalização é mínima. Tais circunstâncias são levadas em consideração pelos que optam por escravizar: na lógica deles, sai mais barato regularizar a situação dos trabalhadores só em casos de fiscalização, do que respeitar as normais legais de proteção e oferecer boas condições de trabalho.

Processo de imobilização da força de trabalho

Há uma combinação de vários fatores, como a dívida, o engano, a violência. Em linhas gerais, observa-se uma regularidade no processo de aliciamento e endividamento dos trabalhadores. Nos casos que estamos estudando, a dívida é a principal estratégia para a produção e a reprodução do trabalho escravo, pois, a menos que paguem suas dívidas, que normalmente são contraídas de forma fraudulenta, os trabalhadores ficam impedidos de deixar a propriedade. Convém ressaltar que, entre as limitações impostas aos trabalhadores com o intuito de imobilizá-los, incluem-se a imposição da dívida pelo transporte, pela alimentação e pelas ferramentas de trabalho, a retenção de documentos (identidade e/ou carteira de trabalho) e toda sorte de ameaças físicas e psicológicas e, em alguns casos, maus-tratos e castigos físicos e assassinato do trabalhador.

Em todos os casos analisados nos relatórios de fiscalização, os trabalhadores já iniciavam suas atividades com débitos, da ordem de R$ 200,00 a R$ 500,00. O pagamento prometido pelos "gatos" durante o processo de aliciamento girava em torno de R$ 200,00 a R$ 400,00, ou prometiam diária de R$ 10,00 a R$ 17,00. Dos empregados inquiridos, vários declararam que só continuavam trabalhando na fazenda porque, nas contas do



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empregador, não possuíam saldo de salário a receber, ou tal saldo era negativo, o que impossibilitava seu retorno ao local de origem. Eles não sabiam quanto deviam, nem quando as atividades teriam fim. Nesse caso, os trabalhadores permanecem por reconhecer uma dívida, que acreditam ser necessário saldar.

Em todos os casos, as condições de trabalho eram totalmente inadequadas, os trabalhadores não tinham a menor segurança, os equipamentos e o material de trabalho que deveriam ser obrigatoriamente fornecidos pelo empregador eram cobrados dos empregados, que nem mesmo sabiam o valor cobrado.

Com respeito às condições dos alojamentos, todos tinham as mesmas características. Em todos os acampamentos, os trabalhadores estavam alojados em barracas cobertas de lona plástica ou palha, sem piso nem parede, sujeitos às intempéries, a animais peçonhentos e a possíveis feras silvestres, e o piso era o chão da floresta. Inexistiam instalações sanitárias nos locais de trabalho, o que obrigava os trabalhadores a fazer suas necessidades a céu aberto. A água oferecida era inadequada e muitas vezes compartilhada com animais, a comida era pouca e ruim.

Setores econômicos e formas de uso da força de trabalho

O que determina o ritmo da utilização de mão-de-obra escrava é a atividade econômica, ou melhor, o aquecimento de uma determinada atividade econômica. Por mais artificial que seja tal aquecimento, reflete-se no avanço sobre a maior fronteira de recursos naturais do planeta. Segundo Pinto (2005), "A mata continuará a ir abaixo para que seu lugar seja ocupado pela forma de gerar produtos com lugar certo no mercado mundial (soja, gado, dendê, minério, etc)".

Gráfico 4: Ações da fiscalização móvel (de 2003 a 2005).

Fonte: Ministério do Trabalho e Emprego. SIT. DEFIT. DETRAE.



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De acordo com os dados resultantes de operações de fiscalização, diversas atividades econômicas utilizam mão-de-obra escrava (Gráfico 4).

De acordo com os dados apresentados no gráfico 4, a pecuária (72%) é a atividade econômica que mais utiliza mão-de-obra escrava, não por acaso tal atividade é o principal ator do desmatamento da Amazônia brasileira. Geralmente os trabalhadores são contratados para operações de desmatamento, derrubam a floresta para aumentar a área ou para limpar o pasto. Observa-se que, em geral, a primeira atividade econômica exercida é a madeireira. É feito um cadastro ou um inventário das árvores e são retiradas às madeiras mais valiosas; depois a floresta é derrubada para virar pasto para a pecuária ou é utilizada para a agricultura (arroz, soja, etc.).

A lista de criadores de gado que foram autuados por recorrer à escravidão é extensa e possui representantes em um arco que vai de Rondônia até o Maranhão, passando pelos estados de Mato Grosso, do Tocantins e do Pará.

Segundo dados oficiais do governo do Pará, essas atividades são altamente rentáveis e estão no topo da pauta de exportação. Por exemplo, em 2004, o Pará possuía o quarto maior rebanho bovino do País, crescendo a uma taxa de 16% e gerando um lucro em torno de R$ 2,7 bilhões por ano. A atividade madeireira foi o segundo item mais importante em 2004 na pauta de exportação do Pará, que exportou US$ 543 milhões de dólares, com crescimento de 45,87% em relação ao ano anterior. Com relação ao carvão vegetal, devido à grande ilegalidade no setor, estamos tomando por base o ferro-gusa: no ano de 2004, o Pará exportou US$ 215 milhões de dólares, com crescimento de 145% em relação a 2003.

Logo, a escravidão não se deve ao fato de o empresário não poder pagar o trabalhador ou ao possível comprometimento de seus lucros, se decidir pagar. Ele simplesmente opta por não pagar, porque é fácil imobilizar os trabalhadores e naturalmente é mais lucrativo, pois o salário não pago aos trabalhadores e os encargos trabalhistas não pagos ao Estado não precisam ser repassados ao preço final do produto, o que torna esse empresário mais competitivo no mercado cada vez mais globalizado. Bales (2001) ressalta que, com a globalização, essa escravidão de baixo custo e altos lucros está evoluindo rapidamente. É um claro alerta: a participação do mercado livre na economia global não implica necessariamente democracia, direitos humanos ou melhores condições de vida.

O custo do trabalho escravo

O custo financeiro dos "novos escravos" reduz-se ao transporte deles ao local de trabalho, sua alimentação, alguma dívida que porventura tenham em algum comércio ou hotel e aos mecanismos empregados como coerção.

Não é possível precisar quanto se ganha com a utilização de trabalho escravo: primeiro, não se sabe ao certo o número de pessoas escravizadas; segundo, as maiores vantagens são obtidas de forma indireta pelas grandes



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corporações. No entanto, é possível fazer um cálculo aproximado em função das estimativas registradas do número de escravos no Brasil e no Pará.

Com base nos dados fornecidos pela CPT referentes à quantidade de trabalhadores escravos por município do Pará nos anos de 1994 a 2005, fizemos um cálculo para evidenciar quanto deixou de ser pago em salários aos trabalhadores escravizados e em encargos sociais ao Estado (ver Tabela 6). Para calcular o valor dos salários não pagos aos trabalhadores, tomamos por base o salário mínimo vigente (R$ 300,00) e multiplicamos esse valor pela quantidade de trabalhadores envolvidos no trabalho escravo nos municípios do Pará. Obtivemos o valor total de R$ 5.572.800,00. Quanto ao cálculo dos encargos sociais básicos sobre o salário, multiplicamos o total de encargos (102,56%) sobre o salário vigente (R$ 300,00) pelo valor desse salário, obtendo R$ 307,68, que é o valor que o empregador paga ao Estado por cada trabalhador. Considerando-se que o empregado ganha o salário mínimo, o total de encargos não pago foi de R$ 5.715.463,68 ao mês. Logo, o lucro obtido pelos empresários que optam por escravizar os trabalhadores, levando-se em consideração os dados da CPT, foi de R$ 11.288.263,68 ao mês.

Lucro: esse é o motivo pelo qual tantos empresários são flagrados utilizando mão-de-obra escrava. Com a globalização, a prática da escravidão é adotada por empresas e fazendas: quando conseguem diminuir os custos de produção, tornam-se mais competitivas no mercado (interno e externo), uma vez que podem barganhar com o preço final do produto, no qual não são embutidos os salários e encargos trabalhistas (Tabela 6).

Em 2004, de acordo com dados da CPT (2004, p. 127-129), 2.476 trabalhadores estiveram envolvidos em denúncias de trabalho escravo no Pará. Se fizermos o mesmo cálculo mencionado anteriormente com base no salário mínimo vigente, levando em consideração 2.476 trabalhadores escravos, o lucro por não pagar aos trabalhadores seria da ordem de R$ 1.504.615,68 ao mês.

Essas reflexões suscitam algumas questões. Se o custo do trabalho comparado com o lucro gerado por tais atividades é tão pequeno, por que não pagar aos trabalhadores? Por que escravizar os trabalhadores, se o fato de serem pagos, em vez de escravizados, não interfere no lucro? Muito embora um salário de R$ 300,00 não seja muito, há muitos trabalhadores dispostos a trabalhar por esse valor.



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Tabela 6: Trabalho escravo por município do Pará (de 1994 a 2005).

Fonte: CPT. Campanha Nacional de Combate ao Trabalho Escravo. Cálculo feito pelas autoras.



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Versiani (1994) discutiu algumas questões relacionadas à escravidão à luz de proposições da teoria econômica, o que nos pode auxiliar a entender questões anteriormente levantadas. O referido autor destaca que, do ponto de vista do comprador da força de trabalho, as características diferenciais do trabalho escravo, em oposição ao trabalho livre remunerado, podem ser analisadas sob três aspectos: a produtividade diferencial do escravo, os custos da coação e o custo aplicado à compra dos escravos. Segundo a hipótese do autor, com relação à produtividade diferencial, em atividades que requerem basicamente força física que pode ser avaliada em termos quantitativos, os escravos são mais produtivos que os trabalhadores livres. Nas atividades intensivas em esforço, que são freqüentemente realizadas em equipe, em geral é possível induzir (forçar) os trabalhadores a ter um desempenho adequado (do ponto de vista do patrão) com uso de métodos que envolvam coação. A princípio, o castigo ou a ameaça de castigo é suficiente para garantir que o trabalho seja bem executado. Com relação à aquisição de escravos, anteriormente o produtor era forçado a investir certa quantidade de capital na compra de escravos, logo, esse custo tinha de ser considerado na comparação entre trabalho escravo e trabalho assalariado.

As atividades que estamos analisando são intensivas em esforço físico (derrubar a floresta, limpar o pasto, carregar tora de madeira, carregar carvão, etc.), e, sob coação, os trabalhadores escravizados são obrigados a produzir mais que os trabalhadores assalariados. Além disso, os empregadores não precisam investir na compra de escravos, nem zelar por eles ou pela sua saúde. O preço da força de trabalho é tão barato que não representa um investimento, se os trabalhadores ficam doentes ou morrem, podem ser facilmente substituídos por outros, sem prejuízo para o capital. O desemprego propicia farta mão-de-obra disponível para ser submetida ao trabalho escravo. Na lógica dos que optam por esse tipo de mão-de-obra, se os trabalhadores podem ser escravizados, por que não fazê-lo? A escravidão é uma boa estratégia de negócio e facilmente realizável.

Lógica das ações de controle do trabalho escravo

Uma vez que o motivo que leva os empresários a escravizar os trabalhadores é o lucro, uma estratégia-chave para acabar com a escravidão é fazer pressão sobre os lucros, pois, caso o negócio deixe de ser lucrativo, os empresários deixarão de recorrer a tal prática. Nesse sentido, uma série de medidas está sendo adotada para punir os que utilizam mão-de-obra escrava, como o rastreamento da cadeia produtiva do trabalho escravo e a criação de mecanismos para tornar menos atraente o investimento em empresas que utilizam tal tipo de mão-de-obra.

Outro instrumento importante na batalha contra o trabalho escravo é a "lista suja", que é divulgada pelo Governo Federal e traz casos comprovados de empresas flagradas e autuadas por trabalho escravo. Segundo as regras



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do Ministério do Trabalho e Emprego, a inclusão do nome do infrator acontecerá após o final do processo administrativo instaurado pelos autos da fiscalização. A exclusão do nome, por sua vez, está condicionada à não reincidência no crime, ao pagamento de todas as multas resultantes da ação de fiscalização e à quitação dos débitos trabalhistas e previdenciários, num período de dois anos1. Com base na "lista suja", instituições federais podem barrar o empréstimo de recursos públicos, como punição a esses empregadores. O Ministério da Integração Nacional impede os relacionados de obterem novos contratos com os fundos constitucionais de financiamento. De acordo com o governo, os denunciados perderão a concessão de créditos e financiamentos em instituições estatais, como, por exemplo, o Banco do Brasil, a Caixa Econômica Federal, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), o Banco do Nordeste e o Banco da Amazônia (BASA).

Além da restrição ao crédito, a divulgação da "lista suja" criou uma base de trabalho para as instituições governamentais e não-governamentais que atuam para a erradicação da escravidão, possibilitando assim a criação de outros mecanismos de repressão e prevenção.

O fim da impunidade é, sem dúvida, essencial nesse combate. É preciso, em primeiro lugar, garantir uma fiscalização ágil, rigorosa, independente. Como a história da região é recheada de inúmeros episódios de tal natureza, gostaríamos de mencionar um caso típico que se tornou sinônimo de impunidade, ocorrido na Fazenda Flor da Mata, em São Félix do Xingu, sudeste do Pará.

A fazenda Flor da Mata é um caso de denúncia recorrente de trabalho escravo. As primeiras denúncias datam de 27 de janeiro de 1987, feitas por um trabalhador que conseguiu fugir. Em função da denúncia, houve uma fiscalização e foi libertado um grupo de 60 trabalhadores em condições caracterizadas como sendo trabalho escravo. A Flor da Mata, de propriedade de Luiz Pereira Martins, mais conhecido como Luiz Pires, é um latifúndio tradicional, cujas atividades econômicas declaradas foram a silvicultura e a exploração florestal, e a agropecuária. O proprietário também possuía outras fazendas: Lagoa das Antas e Santa Fé, no Pará (ambas localizadas em Parauapebas); Juliana (Araguaína) e São Pedro (Riachuelo), no Tocantins; Meios (Tácio Fragoso), Irajá (Balsas), Campo Grande (Riacho), no Maranhão. Também é proprietário em Araguaína da Fiat Automóveis Umuarama e da Construtora Umuarama.

Em setembro de 1997, a Flor da Mata foi novamente denunciada. A operação de fiscalização realizada pelo Grupo Móvel enquadrou a empresa em 25 infrações que retratavam as precárias condições de trabalho e o não cumprimento de cláusulas trabalhistas. Foram libertados 220 trabalhadores.

Por "não cumprir sua função social", por ter sido constatada a existência de trabalho escravo, a fazenda em questão seria desapropriada para fins de reforma agrária sem indenização. Mas o proprietário, Luiz Pires, utilizou sua



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rede de influência política (local e nacional), e as negociações foram-lhe todas favoráveis. No final o fazendeiro lucrou com o cativeiro de 220 trabalhadores, uma vez que a fazenda foi desapropriada por um valor 2.500% maior do que o pago por Luiz Pires três anos antes quando adquiriu a fazenda (SAKAMOTO, 2005). Com efeito, o fazendeiro comprou a fazenda pelo valor de R$ 100.000,00 e recebeu do governo federal uma indenização de R$ 2.500.000,00.

No entanto, o avanço realizado nos últimos anos é incontestável: nos últimos três anos, o Grupo Móvel realizou 219 operações, 170% a mais que no período de 2000 a 2002. O Grupo Especial de Fiscalização Móvel do Ministério do Trabalho e Emprego bateu o recorde de operações de combate ao trabalho escravo em 2005. Foram realizadas 81 operações, com fiscalização em 183 fazendas e a libertação de 4.133 trabalhadores. No total, foram pagos R$ 7,4 milhões em indenizações. O Pará foi o Estado com o maior número de trabalhadores libertos, 1.128 ao todo2. Apesar disso, esses números são apenas a ponta do iceberg.

Frei Xavier Plassat (2005) chama a atenção para uma queda no atendimento às denúncias de trabalho escravo nos últimos três anos:

Causa estranheza e indignação a constatação de que a taxa de atendimento às denúncias encaminhadas tenha caído nesses três anos de 57% (2003) para 33% (2004) e 27% (2005), ficando numa média de 40% nesse período. Isso mostra que foi deixado sem fiscalização um número crescente de casos (72 em 2003, 97 em 2004, 107 em 2005), mantendo em situação provável de cativeiro temporário o inaceitável número de 2.500 a 3.000 pessoas a cada ano.

Segundo Plassat (2005), o motivo dessa falta de atendimento é o descompasso entre a demanda e a estreiteza dos meios disponibilizados pelo Estado. Ressalta Plassat (2005) que os recursos orçamentários do MTE destinados ao combate a esse crime, atualmente em apreciação no Congresso, apresentam um recuo de 20% (de R$ 3.426.868,00, em 2005, para R$ 2.845.000,00, em 2006).

É digno de nota o fato de que, normalmente, quem faz a denúncia é um trabalhador que arrisca sua vida ao fugir da fazenda em busca de socorro. Quando esse socorro não chega, fica minada a credibilidade do Estado, e tornam-se inúteis os custosos e também arriscados esforços de centenas de agentes do movimento social e das igrejas para acolher e amparar as vítimas. Fica principalmente abalada a esperança dos trabalhadores escravizados de sair do inferno que lhes é imposto.


1 SAKAMOTO, Leonardo. Grupo móvel liberta trabalhadores em fazenda ligada a frigoríficos. Agência Carta Maior, 25 nov. 2005. Material enviado por Severino Góes, assessor de imprensa do projeto Combate ao Trabalho Escravo, da Organização Internacional do Trabalho (OIT).



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Queremos deixar claro que não estamos criticando a fiscalização. Muito pelo contrário, acreditamos que grande parte da melhoria no combate ao trabalho escravo deve-se efetivamente a ela, bem como a setores da administração federal e da Justiça engajados na causa e a entidades como a Comissão Pastoral da Terra e a Organização Internacional do Trabalho. Apesar de fundamental, a ação repressiva por si só é incapaz de eliminar as práticas escravistas, pois, no nosso entendimento, fiscalizações, multas, prisão dos envolvidos e cortes em linhas de crédito atacam as conseqüências, mas deixam a causa em aberto. Escravidão no Brasil é sintoma de algo maior: desigualdade econômica e social e atos contra o cidadão. As raízes do trabalho escravo, mesmo o contemporâneo, estão na estrutura formativa do Brasil. O que aconteceu em 13 de maio de 1888 foi uma mudança de metodologia para que houvesse uma adaptação aos novos tempos, e não de mentalidade das classes dominantes e das elites governantes. E nenhum dos governos após a redemocratização fez algo de substancial para mudar essa estrutura.

Para a Comissão Pastoral da Terra, o combate à nova escravidão vai além de libertar trabalhadores. Frei Henri de Roziers, um dos nomes mais importantes na luta contra a violência no campo, afirmou que o trabalho escravo será erradicado pela conscientização do trabalhador e da sociedade e pela mobilização. Para ele, o fundamental é dar emprego e terra para a população plantar.

O Brasil tem um problema crônico de desigualdade, de concentração de renda e de terra. São problemas estruturais que geram os extremos de riqueza e pobreza. Trata-se de um abismo que a cada dia se aprofunda e leva muitos a caírem nas ciladas que conduzem à escravidão. Se nada de efetivo for feito para melhorar a situação de milhões de pessoas que estão abaixo da linha de pobreza, o trabalhador libertado voltará a tornar-se escravo, empurrado pelo desemprego e pelo desespero.

Prevenir, impedindo a utilização de escravos, custa bem menos aos cofres públicos:

Em decisão inédita no Brasil, a juíza federal do Trabalho, Rosângela Cipriano dos Santos, 45, de Colorado do Oeste (RO), condenou a União a indenizar 54 trabalhadores rurais que, em 2003, foram resgatados da situação análoga à de escravos pela fiscalização do Ministério do Trabalho. A juíza determinou que a União pague a cada um deles R$ 52 mil, como indenização por danos morais. O governo teme que a sentença desencadeie uma avalanche de ações judiciais semelhantes, o que poderia comprometer o próprio futuro do programa de combate ao trabalho escravo. A Advocacia Geral da União informou que irá recorrer da sentença. Nos últimos dez anos, segundo dados


2 Recorde de operações contra o trabalho escravo em 2005. Radiobrás, 16 jan. 2005. Material enviado por Severino Góes, assessor de imprensa do projeto Combate ao Trabalho Escravo, da OIT.



Trabalho Escravo nas fazendas do estado do Pará

oficiais, 17.235 pessoas foram resgatadas de situações análogas ao trabalho escravo, sendo cerca de 12 mil no governo Lula. Se todos fossem indenizados no valor estipulado pela juíza, a União teria de desembolsar cerca de R$ 900 milhões3.

Convém lembrar que três dos itens mais importantes da pauta de exportações do país aço, madeira e carne bovina , que respondem por bilhões de dólares na balança externa, são manchados pela escravidão. O que seria mais barato: pôr em prática as leis existentes contra a escravidão no Brasil, ou enfrentar o colapso econômico que geraria o boicote às exportações com que o Brasil mais lucra? (apud BRETON, 2002, p. 260-261).

Entendemos que tais setores econômicos são fundamentais para o desenvolvimento do Estado e do país, para gerar divisas, emprego e renda. Por isso mesmo, é preciso combater combater o trabalho escravo nesses setores, identificando e isolando os empresários que agem criminalmente, impedindo que uma atividade econômica inteira venha a ser prejudicada pelo comportamento de poucos, uma vez que já existem ameaças de restrições comerciais, caso o país não resolva o problema do trabalho escravo.

A aplicação das leis e dos acordos existentes, a elaboração de algumas novas leis e a concessão de ajuda para que os trabalhadores escravizados e suas famílias se estabeleçam é fundamental, pois, sem acesso a um meio alternativo para garantir seu sustento, os trabalhadores escravizados retornarão à escravidão. Para evitar que isso ocorra, são necessárias medidas de prevenção e, com elas, educação, geração de emprego e reforma agrária. Enfim, a erradicação do trabalho escravo só virá com redistribuição de renda, de terra e de justiça.


3 Justiça manda União indenizar por trabalho escravo. Folha de S.Paulo, 15 fev. 2006. Material enviado por Severino Góes, assessor de imprensa do projeto Combate ao Trabalho Escravo, da OIT.



Luciana Sá Fernandes / Rosa Elizabeth Acevedo Marin

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Texto submetido à Revista em 3.02.2007 e aceito para publicação em 22.05.2007.





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