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O tempo dos patrões 'brabos': fragmentos da história da ocupação humana da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Amanã, AM1

 

Edna Ferreira Alencar

Universidade Federal do Pará, Belém, Brasil

E-mail: ealencar@ufpa.br

 

Resumo

 

Este artigo tem como objetivo apresentar alguns aspectos da história social e econômica que marcou a ocupação humana do território da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Amanã, no período que compreende o final do século XIX e inicio do século XX. O artigo se baseia em relatos orais dos moradores das várias localidades que existem nesse território, coletados em intensa pesquisa de campo. Os relatos permitem conhecer as dificuldades e os desafios encontrados por dezenas de famílias para garantir sua subsistência, como eram realizadas as atividades extrativas que constituíam a base da economia dessa região da Amazônia, e também o papel desempenhado pelos comerciantes, os patrões, no processo de ocupação desse território, e sua posterior substituição por outros agentes de desenvolvimento.

 

Palavras-chave: História da Amazônia, memória social, migração.

 

Abstract

 

This article aims to present some aspects of the social and economic history that characterized the human occupation of the Sustainable Development Reserve Amanã territory from the late nineteenth century and early twentieth century. Data comes from oral reports of people living in several towns, collected during intensive field research. The oral stories tell about the difficulties and challenges faced by dozens of families in order to guarantee their subsistence; about the ways that extrativism was conducted as the basic economic enterprise in the region; and also the role played by the traders (the employers), in the process of occupation of that territory, and its subsequent replacement by other agents of development.

 

Key Words: Amazonian history, social memory, migration.

 

Resumen

 

Este artículo tiene por objetivo presentar algunos aspectos de la historia social y económica que marcó la ocupación humana del territorio de la Reserva de Desenvolvimiento Sustentable Amanã (Figura 1), desde fines del siglo diecinueve hasta el inicio del siglo veinte. El artículo se basa en relatos orales de los moradores de las varias localidades que existen en este territorio, recolectados en intensa investigación de campo. Los relatos permiten conocer las dificultades y los desafíos encontrados por docenas de familias para garantizar su subsistencia, como eran realizadas las actividades extractivas que constituían la base de la economía de esta región de la Amazonía , y también el papel jugado por los comerciantes, los patrones, en el proceso de ocupación del territorio, y suya posterior substitución por otros agentes de desenvolvimiento.

 

Palabras-clave: Historia de la Amazonía , memoria social, migración.

 

Introdução

 

Neste texto analisamos alguns aspectos da história da ocupação humana do território onde hoje está situada a Reserva de Desenvolvimento Sustentável Amanã2 (RDSA), no período que compreende as ultimas décadas do século XIX e a primeira metade do século XX. A região da reserva Amanã é dominada pelo lago do mesmo nome, o lago Amanã, e por uma extensa malha fluvial formada por lagos, igarapés, paranás e rios de curta extensão. Esses cursos de água banham extensas áreas de várzea e cortam vastas áreas de terra firme ricas em florestas com espécies que produzem látex, tais como a maçaranduba, a seringa, a sorva, a balata etc., além de florestas formadas por castanhais e espécimes madeireiras de grande valor comercial. Por sua localização geográfica, o complexo hídrico de Amanã permite a comunicação entre três importantes sistemas fluviais: os rios Japurá, Solimões e Negro, que interligam três grandes municípios: Maraã, Coari e Tefé. Através do rio Solimões, por exemplo, famílias que trabalhavam no alto rio Purus ou Juruá podiam se deslocar até a região de Amanã, levadas por comerciantes que percorriam a região vendendo mercadorias e comprando a produção.

 

A história que apresentamos foi narrada a partir da perspectiva dos moradores das várias comunidades que estão situadas na RDSA. Os relatos daqueles que vivenciaram os fatos, ou apenas reproduzem uma memória que é repassada através da oralidade ao longo das gerações, mostram a maneira como as pessoas se situam num certo contexto social, político e econômico da região, e como interpretam as relações que estabeleciam com pessoas pertencentes a outras categorias sociais, como é o caso dos patrões. Seus relatos foram tomados aqui como histórias ainda não documentadas de grupos sociais que historicamente foram marginalizados, e podem ser considerados como evidências orais e também um registro da história oculta da migração (Thomson 2002) que ocorreu na Amazônia no final do século XIX e início do século XX.

 

Pesquisar sobre a história de uma região como a Amazônia baseada apenas na memória dos moradores significa enfrentar muitos desafios, e o principal deles é a profundidade da memória social e a dificuldade encontrada pelos narradores para lembrarem-se dos eventos passados e situá-los cronologicamente. Essa dificuldade se deve não apenas à falta de referências materiais, como casas de alvenaria ou construções públicas, por exemplo, mas principalmente à freqüente migração que as famílias realizaram ao longo de suas vidas, como resposta tanto às mudanças que ocorreriam no sistema de produção econômico ou devido a problemas fundiários, como também a mudanças no próprio ambiente biofísico (Alencar 2007). A migração é uma característica importante da história dessa região, uma vez que a economia, principal motor do processo migratório, estava baseada na exploração extrativista dos recursos naturais. Assim, à medida que os recursos explorados em uma região tornavam-se escassos, a tendência dos trabalhadores era partir em busca de locais que fossem fartos em recursos naturais, seja por iniciativa própria ou com o estímulo e apoio de algum comerciante. Além disso, a sazonalidade da produção exigia uma constante mobilidade das pessoas entre ambientes distintos e até entre regiões distantes geograficamente, e isso lhes possibilitava conhecer outras realidades e identificar oportunidades de trabalho, o que geralmente culminava com a migração para locais onde houvesse fartura de recursos naturais e condições de comercializar a produção. Em suas falas os moradores destacaram os processos de troca de informações sobre oportunidades econômicas, a articulação de redes de sociabilidade e de parentesco; apontaram os vários atores sociais que participaram na construção de redes sociais que caracterizaram o processo de ocupação da região, com destaque para os patrões; revelaram também o complexo entrelaçamento de fatores sociais, econômicos e ambientais que influenciaram indivíduos e famílias nas decisões de migrar.

 

Ao buscarmos informações sobre a ocupação humana de Amanã foi possível conhecer o tipo de memória coletiva que as pessoas conservam do passado, e que permite tecer a trama de uma história que tem um tempo e um espaço bem definidos. Para Halbwachs (1990:71) a memória coletiva 'tem tudo o que é preciso para constituir um quadro vivo e natural em que um pensamento pode se apoiar , para conservar e reencontrar a imagem de seu passado '. A memória coletiva é um conjunto de lembranças que um grupo ou sociedade conserva como referência de sua própria existência , e não a somatória de todas as memórias individuais . Como um processo coletivo, o grupo social tem um papel importante no sentido de reforçar as lembranças e de estimular sua emergência.

 

O alcance da memória coletiva sobre os eventos que constroem a trama da história dessa região remete a apenas duas gerações ascendentes, pois foram poucos os que se lembraram do nome e origem dos avós, um reflexo da constante migração que realizavam, com a descontinuidade dos vínculos sociais no espaço e no tempo. Outro aspecto a ser enfatizado é a migração dos moradores mais antigos, e que são depositários da memória dos grupos sociais e dos lugares, para cidades como Tefé, Marãa, Coari e Manaus. Como observado em outras regiões , a migração das gerações mais velhas para a área urbana surge como um fator limitante no processo de reprodução da memória social sobre os eventos passados para as novas gerações (Alencar 2002, 2008). O não partilhar a memória do passado resulta em lacunas e fragmentação da memória do passado por aqueles que hoje habitam as comunidades da RDSA, e que não vivenciaram os eventos narrados.

 

Para obter as informações tomamos como ponto de partida a história de formação das localidades3, com o objetivo de conhecer os fatores sociais e ambientais que influenciaram, de alguma maneira, na fixação ou na migração das famílias. Nesse contexto, o fator ambiental possui um papel importante devido às variações sazonais expressas nas cheias e vazantes dos rios, e as mudanças que ocorrem na paisagem física causadas pela terra caída e pela formação de novas terras (como praias e ilhas) que alteram a configuração da paisagem física, mudam o curso dos rios, formam paranás, e também formam ou destroem lagos. A relação dos grupos humanos com esse tipo de ambiente é marcada pelas estratégias que adotam para explorar os recursos naturais disponíveis e garantir sua subsistência. Alguns fatores sociais também tiveram um papel importante nesse processo, destacando-se os laços sociais e de parentesco; o sistema de produção econômica; as estratégias econômicas e as redes de comercialização; a forma de ocupação e controle do território e dos recursos naturais; a problemática da posse e da propriedade da terra , a presença ou não do Estado, dentre outros. Tais fatores demonstram a relevância do contexto social para compor um quadro demonstrativo do processo de ocupação dessa região no período de quase cem anos.

 

A ocupação humana da região de Amanã

 

Antes de falar sobre a ocupação humana da região de Amanã convém falar, brevemente, do processo de ocupação colonial da região da Amazônia central, destacando as mudanças no sistema de produção econômica, o predomínio de uma economia centrada no extrativismo de recursos naturais; a existência de um processo migratório formado por pessoas oriundas de outras regiões do país, ou de regiões situadas na própria Amazônia, e a ocupação de territórios já ocupados por populações indígenas, que foram obrigadas a se deslocar ou migrar para regiões mais centrais, ou seja, distantes das margens dos rios principais.

 

A história da ocupação colonial da Amazônia tem sido contada a partir de uma cronologia que usa como marcadores os sistemas de produção econômica, geralmente pensados na perspectiva de ciclos, numa referência à duração e às características de determinadas formas de exploração econômica que predominaram em determinado período (Wagley 1967 apud Arnaud 1989; Oliveira 1984). Essa história enfatiza que o processo de expansão da economia mercantil, fundada na exploração de recursos naturais, implicou no deslocamento e no extermínio de populações nativas que viviam às margens dos rios principais, e que eram as únicas vias de acesso às áreas de extrativismo, tanto das drogas dos sertões no século XVII, quanto da borracha no século XIX e início do século XX.

 

Com a expansão da economia extrativista centrada na exploração da borracha nas ultimas décadas do século XIX e primeiras décadas do século XX, a ocupação da Amazônia ocorreu de forma intensa, estimulada pelo próprio Estado. Nesse momento houve um aumento demográfico e uma expansão territorial na Amazônia, como parte de um processo mais amplo de expansão da economia capitalista monopolista internacional, que investiu na indústria extrativista do látex chegando, inclusive, a financiar a entrada de imigrantes para a região, através de empréstimos feitos aos governos das províncias para que estes facilitassem o transporte dos mesmos (Weinstein 1993). A indústria da borracha, que se expandiu nas ultimas décadas do século XIX, atraiu migrantes de várias regiões do Brasil para a Amazônia, com destaque para migrantes oriundos da região Nordeste , principalmente dos estados do Ceará e do Maranhão. Esses imigrantes eram atraídos pelas notícias de fartura de recursos naturais e por promessas de enriquecimento rápido; após uma parada na cidade de Manaus, eles eram enviados para os seringais localizados no alto dos rios Purus, Juruá e Japurá, onde estavam concentrados os seringais mais produtivos (Santos 1970, Weinstein 1993). Esses imigrantes contribuíram com o processo de ocupação de amplos territórios, já ocupados pela população ameríndia, ao mesmo tempo em que causavam o seu despovoamento, alterando significativamente o mapa demográfico da região ocidental da Amazônica. Segundo A. E. Oliveira, em 1820 o número de imigrantes foi estimado ao redor de 137 mil habitantes; em 1870 passou para 323 mil; em 1900 alcançou cerca de 695 mil e em 1910 chegou a atingir 1.217.000 indivíduos' (Oliveira 1984:223). Nesse processo de ocupação humana tiveram destaque grandes empresas bancárias e de comércio com sede em Belém e Manaus, mas vinculadas a empresas inglesas e americanas, que faziam o aviamento de mercadorias para abastecer os pequenos comerciantes espalhados em seringais situados nas terras firmes , cujo acesso era realizado através dos rios principais e dos igarapés . Por estas vias também era escoada a produção da borracha . As empresas de navegação , diretamente vinculadas às empresas estrangeiras que investiram na indústria extrativa da borracha , também desempenharam um papel importante nesse processo , por facilitar o escoamento da produção e o abastecimento dos trabalhadores espalhados nos vários seringais localizados no interior da Amazônia. É nesse contexto de expansão da indústria da borracha que ocorre a ocupação humana de Amanã, cuja história narrada pelos moradores remete a uma escala de tempo de quase cem anos : de 1900 a 2005 (Alencar 2007).

 

Para uma análise mais particularizada da periodização histórica da região de Amanã, buscamos o trabalho de Lima-Ayres (1992) que realizou uma caracterização da evolução da economia da região do médio Solimões, a qual pode ser estendida para a região do baixo Japurá (Alencar 2007). Para essa caracterização a autora tomou um momento particular da história econômica e social marcado pela sujeição dos extratores a um patrão , e usou como referências o padrão de povoamento, o comércio e o trabalho livre . Com isso a autora identificou três fases as quais correspondem ao período de 'consolidação e decadência do sistema de aviamento na região' (Lima-Ayres 1992: 110). As datas de inicio e do fim de cada uma são aproximações , não correspondendo a um momento exato de transição entre elas .

 

A primeira fase (1760-1860) teve como característica o predomínio de uma economia centrada na extração de produtos florestais, quando ocorriam as expedições de trabalhadores para realizar a extração (Lima-Ayres 1992: 111). Nesta fase, o comércio e a residência concentravam-se na área urbana . No entanto, como vimos acima, Oliveira (1984:221) destaca que nesse momento também houve uma produção que não estava centrada no extrativismo, mas no cultivo do cacau e na produção de açúcar . A segunda fase (1870-1960) tem como principal característica a existência de um comércio centrado também na extração de produtos florestais, mas com a presença de um comércio na área rural constituído em torno do barracão dos patrões (Lima-Ayres 1992: 112). A terceira fase (de 1970 aos dias atuais) tem como características a existência de um comércio centrado na extração de produtos florestais, um padrão demográfico caracterizado por uma população que residia nas áreas rurais e urbanas, e ser o marco do fim do sistema econômico nucleado na figura do patrão e seu barracão . Nesta fase o patrão foi substituído por pequenos comerciantes que realizavam o comércio em seus próprios barcos, os regatões. Embora tenham introduzido a troca monetária, mantiveram o sistema de troca baseado em mercadoria versus produto, o escambo, e o sistema de aviamento como ocorria com os antigos patrões, financiando a mercadoria e recebendo o produto em pagamento (Lima-Ayres 1992: 116).

 

De modo geral, fica claro, nas diversas tentativas de periodização da história da ocupação colonial da Amazônia, que o processo de expansão da economia mercantil fundada na exploração de recursos naturais e na utilização da população local como mão-de-obra escrava resultou em profundas transformações sócio-culturais e econômicas. Inicialmente, a ocupação do território ocorreu com a exploração das terras situadas às margens dos rios principais e das áreas de terra firme, e implicou no deslocamento e no extermínio de populações nativas que viviam às margens de rios como o Solimões, o Japurá, o Juruá, o Purus e o Madeira, usados como principais rotas de acesso às áreas de extrativismo. Na segunda metade do século XIX adquiriu novos contornos quando a ocupação ocorreu de forma intensa estimulada pela expansão da atividade econômica centrada no extrativismo da borracha e com as políticas dos governos provinciais voltadas para o povoamento da Amazônia. Tudo isso alterou significativamente o mapa demográfico da região ocidental da Amazônica. As políticas governamentais consistiram no incentivo dado a imigrantes estrangeiros e nacionais para ocupar terras e desenvolver a agricultura (Oliveira 1984, Weinstein 1993).

 

A história da ocupação humana da região de Amanã, no período alcançado pela memória social dos moradores, não ocorre de modo diferente. Os primeiros povoados que existiram nessa região foram formados por imigrantes de origem nordestina, mais precisamente por cearenses e paraibanos. Alguns vieram diretamente do Ceará para essa região, fugindo da seca ou de algum conflito fundiário, enquanto outros, embora também de origem nordestina, vieram da região de seringais situados nas cabeceiras dos rios Juruá e Purus, fugindo do alcance de alguns seringalistas que exploravam exaustivamente sua força de trabalho. Em Amanã, eles encontravam vastas áreas de terras controladas por poucas pessoas, e sem a presença de qualquer grupo indígena (Alencar 2007).


Alguns atores tiveram um papel importante nesse processo, quer por garantir as condições mínimas de trabalho para as famílias que realizavam a extração do látex, a caça, a pesca e a coleta da castanha, quer por estimular a organização dessas famílias em pequenos núcleos de povoamento que receberam o nome de comunidades (Alencar 2007). São eles: i) os comerciantes (referidos como patrões), que visando maximizar uma economia extrativista e predatória que estava fundada no lucro imediato viabilizaram a ocupação das áreas mais distantes; ii) a Igreja Católica, que através da Prelazia de Tefé estimulou a formação de núcleos de povoamento, as Comunidades, iniciando um trabalho com um viés comunitário e de cunho ambientalista; iii) o Estado, que através da criação de novos municípios e investimentos em infraestrutura para as comunidades rurais, como a construção de escola, contribuiu para a redução do fluxo migratório em direção as áreas urbanas (Alencar 2007).

 

A partir de uma análise do papel desses atores é possível identificar distintos padrões de povoamento e dois momentos dessa história da ocupação: o primeiro momento, que podemos chamar de 'o tempo dos patrões', compreende o final do século XIX e a primeira metade do século XX, quando predomina uma economia centrada basicamente no extrativismo de produtos florestais (extração do látex e coleta da castanha), e produtos de origem animal (caça e pesca). Nesse momento o comércio estava centrado na área rural, constituído em torno do barracão dos patrões, que também controlavam extensas áreas de terras firmes que eram cortadas por vários cursos de água, os igarapés, através dos quais era possível ter acesso a um amplo território rico em castanheiras, seringueiras, sorveiras e animais de caça (Alencar 2007). As relações de trabalho são marcadas pela sujeição dos trabalhadores aos grandes comerciantes, os patrões, que controlavam grandes áreas de terra firme, e estabeleciam regras para a ocupação dessas terras e para a exploração dos recursos naturais nelas existentes.

 

O segundo momento, que é 'o tempo das comunidades'4, corresponde a segunda metade do século XX, dos anos 1960 em diante, quando são formadas as comunidades. O termo comunidade foi introduzido nessa região da Amazônia pela Igreja Católica nos anos 1970 através das ações do MEB, que incentivou as famílias que viviam dispersas a se juntarem em povoamentos e formar uma organização política com forte viés comunitário (Faulhaber 1987, Lima 2000, Alencar 2004, 2007). Na concepção local o conceito de comunidade remete a um conjunto de famílias que moram juntas e partilham um território comum, realizam ações conjuntas e possuem uma forma de representação política na figura do presidente da comunidade, que representa os interesses e encaminha as reivindicações dos moradores junto ao poder público municipal. Com a formação das comunidades as famílias foram estimuladas não apenas a se organizarem politicamente, como também a desenvolver atividades econômicas com menos dependência dos recursos naturais, e a realizar o manejo de recursos naturais5.

 

Para cada um desses momentos corresponderam diferentes formas de ocupação do espaço e de uso de recursos naturais, e também dinâmicas demográficas distintas. No primeiro momento havia a dispersão das famílias que residiam isoladas em pequenos povoados, que possuíam uma baixa densidade demográfica, sendo formados por duas a três casas ocupadas por casais de um mesmo grupo de parentela. As localidades maiores eram aquelas onde estava localizado o comércio de um seringalista, referido como barracão, onde era estocada a produção e as mercadorias que eram aviadas aos trabalhadores. A permanência das famílias nesses povoados era garantida pela presença do patrão que chegava até o local levando mercadorias e recolhendo a produção. No segundo momento, quando ocorre a formação das comunidades, as famílias se juntam e tendem a fixar residência mais prolongada num mesmo lugar. Através da organização comunitária conseguem reivindicar junto ao poder público municipal investimentos para a melhoria da infraestrutura comunitária, como a construção de escolas e a contratação de professores. A existência de escolas nas comunidades é um fator que permite a estabilidade dos povoados e a fixação das famílias, pois os pais buscam investir na educação escolar dos filhos. Mas, neste trabalho, nos deteremos nos primeiros personagens, os patrões, mostrando as representações que se construíram sobre eles e que fazem parte do imaginário dos moradores das comunidades da Reserva Amanã. 

 

A vida nas colocações: controle da produção e do território


Nos últimos cem anos o tipo de exploração econômica desenvolvida na região de Amanã foi um fator que determinou a maneira como ocorreu a ocupação do espaço, influenciou no processo de escolha dos locais para a construção dos povoados, na variação do número dos mesmos e na dinâmica populacional. O processo de ocupação da região que ocorreu entre o final do século XIX e o início do século XX reflete uma característica do processo mais amplo de ocupação humana da Amazônia promovida por uma economia extrativista predatória centrada na exploração de recursos naturais. Nesse momento houve a ocupação das terras situadas nas áreas mais centrais onde estavam localizados os seringais mais produtivos, que eram acessíveis através de rios menores que deságuam nos rios principais como o Japurá, o Juruá, o Purus e o Solimões, e de dezenas de igarapés que cortam a região. Com o declínio da produção da borracha que ocorreu a partir das primeiras décadas do século XX, inicia-se um novo fluxo migratório, que parte das áreas de seringais situados nas cabeceiras dos rios  mencionados acima e se dirigia para as áreas de várzea ou de terra firme situadas nas regiões do médio Solimões, baixo Japurá e Purus (Lima e Alencar 2000), famosas pela fartura de pescado e de outros produtos extrativos com grande valor de mercado. Mais uma vez os migrantes buscavam a terra, a fartura e as riquezas que lhes haviam sido prometidas.


Para as três primeiras décadas do século XX há informações sobre a chegada de algumas famílias oriundas de seringais localizados nos rios Juruá, Jutaí e Japurá para se estabelecerem em terras situadas às proximidades do lago Amanã, ou às margens de rios e paranás que davam acesso a esse lago. Essas famílias foram atraídas pela notícia da existência de lagos fartos em pescado, e de amplas áreas de terra firme onde abundavam florestas ricas em castanhais, seringueiras, sorveiras, animais de caça e lagos ricos em pescado.   

 

 

'Muitos vinha por notícia, né? Porque aqui né, era isolado. O finado papai contava que eles vieram por notícia, que aqui era muito bom, muito farto de tudo. E era mesmo. E quando um lugar é assim, o pessoal trata logo porque tem o que eles tirarem, tem produção, né? Aí então por notícia eles vieram' (Senhor. S., Vila Nova).


'Aí muitos quando voltavam, cortavam e iam pra Manaus. Muitos iam porque queriam conhecer. E foi assim que foram chegando os arigós. Chegavam aqui do Juruá. Era no tempo da guerra. Os patrões faziam pedidos de mercadoria dos arigós, mostravam o retrato do cara ensapatado, todo bacana, só pra enganar. O cara quando chega assim leva na cara. E eles chegavam e viam o retrato do seringueiro e pensava: - Vou ganhar dinheiro, aí vinha aquela quantidade. Muitos morreram aqui no Coracizinho, de muitas doenças; malária' (Senhor A., Matuzalém).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Embora as mudanças no sistema de produção econômica apareçam como um dos fatores que influenciaram as decisões de migração das famílias, como a falência de alguns dos principais seringalistas que atuavam nessa região da Amazônia, os relatos dos moradores também revelam a existência de complexos sistemas de troca de informações e de articulação de redes sociais que permitiam a circulação de informações sobre oportunidades econômicas. Nos relatos acima é possível observar um aspecto que Thomson (2002:345) ressalta em seus trabalhos que é o fato de que 'as narrativas dos migrantes evocam os 'imaginários culturais' sobre os futuros locais de destino e explicam como estes imaginários são produzidos, disseminados, recebidos e usados'.


Até os anos 60 do século XX os patrões são os principais agentes do processo migratório dessa região, ao divulgar as oportunidades de trabalho e viabilizar o deslocamento das famílias. Eles também garantiam o abastecimento dos pequenos seringalistas que aviavam mercadorias para os extratores e coletores6 (ou quebradores de castanha, como são conhecidos regionalmente), e criando condições para o escoamento da produção retirada das áreas mais distantes dos rios principais. Quando pretendiam aumentar a produção, eles chegavam a recrutar pessoas que residiam na área urbana7 ou em outras regiões, para trabalhar na extração da sorva, da seringa, da maçaranduba ou na coleta de castanha, usando como argumento a fartura de produtos naturais. Eles também recrutavam moradores dos povoados da região de Amanã para trabalhar em seringais situados na região do rio Japurá, por exemplo. Geralmente se tratava de famílias que eram seus fregueses e tinham dividas a acertar, e essas famílias se transformavam em importantes elos de uma rede de troca de informações sobre oportunidades econômicas. Dentre os atuais moradores das comunidades existentes em Amanã muitos descendem de pessoas que migraram da região do médio Japurá.

 

 

'O Joaquim Pachola ele veio uma viagem e trouxe uns índios lá do Purê pra cá pro Centro Grande né. Ai destombou o pessoal pra lá. Ele trouxe esses índios pra cá, deixou lá no Centro Grande. Ai num deu certo e depois andavam por ai, se viravam e foram embora. Voltaram pro Purê' (Senhor S., Vila Nova).


'Nasci ai pra cima, no Santo Antonio do Içá, no lugar Boiuçu Grande. Nós chegamos pra cá em 53. Eu vim com meu pai, porque o vovô tava muito velho e queria se mudar pra outro canto. Trabalhava era com sorva, castanha, com pirarucu. Quando não dava mais pra gente, procuramos outro lugar. Viemos pro Japurá, mas não deu certo e baixamos pro Valença. Não se demos bem porque não dava roça. Eu comecei a trabalhar com 11 anos com meu pai lá no Japurá. Depois o Cinésio trouxe ele pra cá. Ele dizia que o lago do Amanã era bom, tinha muito pirarucu. Aqui tinha um comerciante, o Jorge Gama, ai nós começamos a trabalhar com ele (...) Nós viemos pra cá em 53, foi esse homem que trouxe a gente. Essa terra era do Alceu Gama, que eles eram irmãos. Ele tinha um barracão, o Alceu Gama, e vinha de mês em mês pegar castanha aqui. Naquela época não tinha motor. Então o Alceu trazia mercadoria e ele aviava e tinha freguês nessas comunidades todas. Trabalhamos pouco tempo com eles, de 53 pra 70. Uns vinte anos. Ai quando eles saíram, ai o pessoal foi viver fazendo produção de peixe. Muitos lugares estão abandonados. Desses antigos só tá nós e o pessoal dos Tavares lá do Baré' (Senhor C., Boa Esperança).


'Quando eu entrei aqui eu tinha 15 anos. Nós baixamos do Japurá, lá do Paraná da Igualdade pra cortar seringa com o patrão Cinésio Machado. Os comerciante trazia de lá as famílias pra cá falando que aqui era bom. E ai ficava trabalhando pra eles. Eles aviava os freguês ai a gente trabalhava pra pagar eles (...) A produção era seringa, maçaranduba e castanha' (Senhor A., Boa Esperança).


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

As famílias que chegavam para trabalhar na região do lago Amanã eram conduzidas para trabalhar nas colocações situadas dentro dos igarapés que dava acesso às áreas de extração do látex ou de coleta da castanha. Nessas colocações elas erguiam uma morada rústica, o tapiri, coberta de palha, com assoalho e paredes de paxiúba, e ai residiam durante alguns meses ao longo do ano, em períodos alternados. No período do inverno trabalhavam realizando a coleta de alguns produtos, como a castanha do Brasil, mas no verão se dedicavam à extração da borracha, ao cultivo de roças, à caça ou à pesca do pirarucu, cuja carne era um dos produtos mais valorizado naquele momento. Essa estratégia de combinar diferentes atividades de acordo com a sazonalidade do ambiente contribuiu para que as famílias não mantivessem uma residência fixa apenas em um local, pois geralmente passavam a metade do ano em locais distintos, situados em ambientes também distintos, ou seja, na várzea e na terra firme. Como as famílias não dispunham de tempo para fazer roças de mandioca para a produção de farinha, elas dependiam dos patrões para ter acesso a esse produto, principal item de sua alimentação. 


Algumas colocações eram referências para as famílias que trabalhavam dentro dos igarapés porque nelas estava localizado o barracão de mercadoria e de armazenamento da produção, controlado por um gerente. Nesse tipo de economia, uma estratégia utilizada pelos grandes comerciantes para melhor administrar o processo de produção extrativista nas terras que eles detinham a posse, consistia em designar uma pessoa para controlar as atividades extrativas realizadas nas colocações mais distantes, viabilizando o fornecimento de mercadorias e a coleta da produção. Esta pessoa era conhecida como 'o gerente'. O fornecimento de mercadorias garantia a permanência dos trabalhadores nas áreas de extrativismo e de coleta durante todo o fábrico, sendo uma forma de maximizar a produção e também de manter o trabalhador cativo, com débitos.

 

 

'Vendia o produto pro patrão né? Só podia vender pra ele porque era ele que aviava a freguesia e comprava a produção, né? Era com isso que nós ganhava' (Senhor J. G., Iracema).

 

 

 

 

 

Periodicamente, enquanto durava a safra, os gerentes percorriam os povoados onde estavam os barracões a bordo de embarcações, sejam movidas a remo, conhecidas como voga8, movidas à lenha (os recreios ou gaiolas) e, posteriormente, movidas a diesel, para recolher a produção que era levada para os mercados regionais de Coari e Tefé, e até para mercados mais distantes como o de Manaus. Assim, os patrões tinham o controle do processo extrativista que implicava não apenas na exclusividade do aviamento, como também no controle da comercialização da produção.
Os navios dos patrões são os principais símbolos da prosperidade que existiu nesse período, pois faziam a ligação do mundo dos extratores com o mundo urbano, numa associação clara com o desenvolvimento, traduzido como animação.


'Porque o Amanã, antes de nós e de outros que tão aí do nosso tempo, isso aí foi explorado com a borracha, castanha, sorva né. Exportava muita sorva daqui de dentro. Então tinha esse navio que vinha diretamente buscar a produção aí dentro. Era muita produção, que dava pra entrar navio né. Era produção grande mesmo. Lancha, tudo entrava aqui pra dentro' (Senhor J., Kalafate).

 

 

'Eu num trabalhei não, mas eu andei com o papai na picada de castanha lá no Baré. Quando esse Marapatá (navio) passava, aí ia avisando. Encostava lá no Baré, que justamente era onde trabalhava o finado meu avô, e os dois avôs. Aí num demorava, escutava a buzina, era lá pra dentro no Juá Grande, no Juazinho. Tudo pegando castanha daquele pessoal, né? Aí saiam na canoa, iam espiar. Ai chegava diziam: 'Ah! Ainda vem longe, mais num vem muito longe não, parece que já vem lá no Gavião'. O gavião é um aratizal. 'Vem lá defronte do Gavião ainda'. Chega a luz vinha acesa lá naquele meião! 'Mas vem chegar aí '. Todo mundo acordado. 'Vamo fazer café, né?' E eu escutando né, escutando. Até que chegava, aí iam lá embarcar castanha, aquelas horas da noite. Aí o finado papai nessas alturas já tava se arrumando, ele com o finado meu avô, que era pra pegar reboque todo mundo né? Ele já tava no fim da castanha, né? Aí lá vai aquela penca de canoa danado no reboque. Eita que ia embora! Ia ficar tudo aqui fora, onde eles paravam, né? Aí nós morava lá dentro do Itanga... Aí nós ia pra lá. Eu sei que era aquela animação daquele pessoal. Todo ano era assim esse Marapatá. Todo final do fábrico era assim. O pessoal entravam, eles vinham aí vendendo a mercadoria ou antes do pessoal irem pra lá, né, trabalhar. Aí depois que vendia tudinho, ia embora. Aí só vinha já pro final quando já tava tudo tirado, a castanha. Aí só vinha buscar. Pra mim a modo era animado. Depois o Marapatá deu um problema lá, ai ele comprou um tal de Cecílio. O Cecílio era o batelão, que o nome era Cecílio, né? Aí eu sei que o bicho tinha a pôpa toró e andava com uma alvarenga na ilharga. A alvarenga que eu digo é outro batelão, na ilharga. Aí ele andava já pegando castanha. Depois disso, o bicho vinha chapado, dava muita castanha aqui dentro (...) Isso já faz muito tempo. Eu era novinho, era assim como esse menino do Zé, esse que tá com 8 anos. Eu andava com o velho na picada de castanha, ele, o finado vovô, nós três' (Senhor S., Vila Nova do Amanã).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O fornecimento de mercadorias garantia a permanência dos trabalhadores nas colocações durante todo o fábrico, sendo uma forma de maximizar a produção e também de manter o trabalhador cativo, com débitos. Quando o patrão não levava as mercadorias até os acampamentos, os trabalhadores necessitavam se deslocar para o povoado mais próximo onde existisse comércio, para se abastecer, ou se dirigiam para a cidade mais próxima.     

 

 

'Nós trazia o rancho de Alvarães no remo. Era quase uma semana. Era quase 4 dias pra chegar lá na boca (do lago Amanã). Dormia ai pela beira. Aqui era muito difícil, quando não tinha mercadoria tinha que ir comprar lá fora. Mas o patrão quando marcava a data ele chegava pra trazer a mercadoria. Quando ele falhava a gente comprava fora. O Natanael ele ficava ai efetivo. Ele era o patrão de lá. Vinha outro só pra trazer mercadoria, pegar o produto e ir embora' (Tomaz, Várzea Alegre).

 

'Tinha muitas dificuldades. O pessoal que ia fazer o fábrico ficava seis meses trabalhando. E quando o patrão falhava, eles iam a remo comprar mercadoria lá em Alvarães, Tefé. Levava quase uma semana. Eu ainda fui de remo. Nós fizemos uma viagem de remo pra Tefé. Naquele tempo o patrão, se por acaso ele passava aqui na minha casa e vendia o rancho, passava dois, três mês pro alto, pro Japurá, Solimões, por aí. Então dentro desses três mês faltava o rancho. Ai a gente ia embora pra Tefé. Num tinha viajantes, num tinha um canto né. Mas antes de nós chegar aqui, disse que entrava aqui por dentro desde navio' (Jota, Kalafate)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O controle que os patrões mantinham sobre a ocupação da terra e a exploração dos recursos naturais é um fator que limitava o acesso à terra, e impedia a formação de povoados, pois apenas a família que tinha autorização para explorar a produção podia residir no local onde era construída a colocação.   

 

 

'Vamos supor: se aqui fosse como era naquele tempo, ninguém tinha formado comunidade porque o dono da terra num deixava. E se a pessoa chegasse e fizesse uma colocação, sem falar com o dono, sem saber que tinha dono e aparecesse o dono, era formada uma questão, que era invasor né? Aqui acontecia muito isso. Porque quando eu trabalhava com o meu avô, sempre dava esses conflito, de invadir o lugar dos outro assim pra tirar produção. Aí a gente era acusado como invasor. E aí quando tava bem no trabalho e aparecia o dono do terreno, ele fazia questão do terreno, com a gente. Como ainda aconteceu várias vezes o dono do terreno questionar por causa de seringa, castanha, sorva, madeira. Ainda houve um monte de gente em questão lá por causa disso. Num tomava a produção, mas questionava. Aí tinha que pagar a renda e o dono pedia o lugar, aí liberava. Aqui no Castanho acontecia com nós' (Senhor J., Kalafate).

 

'Um patrão trazia o pessoal, aí colocava lá pra trabalhar pra ele. Quando o terreno não era dele, ele arrendava de quem era o dono. Na época que nós trabalhava lá dentro do Centro Grande o terreno era arrendado pra tirar a produção. Ai vendia o produto pro patrão né? Só podia vender pra ele. Porque era ele que aviava a freguesia e comprava a produção, né? Era com isso que nós ganhava' (Senhor J., Kalafate).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O controle do acesso a terra e aos recursos naturais contribuiu, por exemplo, para que as terras onde hoje estão situadas as comunidades mais antigas de Amanã ficassem concentradas em mãos de algumas famílias, que não permitiam que pessoas de fora do seu grupo de parentesco estabelecessem residência ou explorassem os recursos naturais (Alencar 2007).
Além dos fatores sociais ligados à posse e ao controle da terra, os narradores apontaram alguns fatores ambientais para explicar o povoamento escasso de Amanã e como limitantes à fixação de moradores nas áreas mais distantes das principais vias fluviais de comunicação, dentre eles estão as doenças (malária e febre amarela) e o isolamento geográfico.

 

Os patrões 'brabos' e o trabalho cativo: quando a lei era o rifle


Nas lembranças que os moradores conservam da história do passado, a localização dos eventos no espaço e no tempo é marcada pelas figuras dos patrões, pela fartura dos recursos naturais e pelo volume da produção que era extraído das terras de Amanã, principalmente da castanha, da seringa e da sorva. Mas essa memória do passado é marcada não apenas pela lembrança da fartura de recursos naturais, como também pela lembrança das dificuldades enfrentadas pelos trabalhadores, pelas doenças, pelas péssimas condições de trabalho e pela sujeição ao patrão. Os excessos cometidos por alguns patrões considerados mais rígidos hoje são parte do imaginário e da memória social dessa região, que é reproduzida por pessoas que apesar de não terem presenciado tais excessos, reproduzem em detalhes os relatos daquelas que testemunharam ou sofrerem algum episódio de violência cometida por algum patrão. Os excessos referem-se principalmente ao modo como era explorada a mão de obra visando maximizar a produção, e o não-pagamento daqueles trabalhadores que conseguiam obter uma produção suficiente para saldar suas dívidas junto ao barracão.


A violência que predominava naquela época tinha o aval do Estado, pois muitos patrões eram investidos de autoridade policial, como delegados de policia, nomeados por administradores municipais. Eram eles que ditavam as regras e que faziam cumprir a lei com violência, afinal vivia-se num tempo onde 'a lei era o rifle '.  

 

 

'Eu não alcancei isso né, mas aquela dona Maria Modesto, que era mãe desse Zé Antonio, ela me contou muitas vezes que quando o freguês tirava saldo o patrão dizia pro capanga dele: '- Você leva esse cara assim e vai fazer um serviço com ele'. E lá ela me contou que tinha um lugar que tinha um apuizeiro, uma árvore grande que bota a raiz pra cá, bota pra acolá e haja ramalhudo. Lá que ele matava e depositavam lá pra urubu comer. Assim que ela me contou, né? Agora num é uma coisa que eu visse. Ela contava isso, essa mãe do Zé Antonio' (Senhor P. Pereira, Comapara).


'O meu pai contava que o pai dele vinha baixando do Juruá pra vim pra cá, parou no porto duma casa, no barracão. Ele trabalhava pra lá, ele também era filho do Juruá. Aí ele saiu assim, tinha um açaizeiro assim como esse aí, e o sangue assim embaixo. Ia um curumim com ele, aí ele perguntou do curumim: - Sangue de que é isso menino? Aí o menino disse: - É sangue dum homem que o seu fulano matou aqui. - E pra que ele faz isso? Já tava rapazinho, o menino, ele disse: - É porque quando o freguês dele tira saldo, ele manda ele subir aqui nesse açaizeiro e diz: - Vê se o açaizeiro vai dar cacho este ano? Ele se embalando numa rede. O menino contou pro papai isso. Aí ele chegava lá: - Repara bem no toco do cabo da folha. Ele pegava o rifle e pôôôôuu e pêêii no chão! Aí chamava o capanga: - Hei, vem puxar o macaco e vai jogar no rio! Pode jogar lá na água! Ta vendo? Lá era assim mesmo, num queria pagar o saldo do homem, mandava matar' (Senhor F. São José Urini).


' Tinha um patrão ai nesse Amanã que disse que quando os empregado dele iam tarrafear, ele subia pelo meio do mato e atirava, o que andava pescando com ele. Mas ele atirava neles pra espantar. Ah minha irmã, aqui já foi lugar de gente malvado. Só morava arigó aqui. Aqueles arigó de num conversar com ninguém não. Com eles era tudo resolvido na faca. Eu ainda era pequeno, mas me lembro. Eles chegavam aqui, conseguiam essas terras e o pessoal começava a trabalhar com eles. Ai eles chamavam os outros. Eu tinha um tio que era isso. Eu conto porque eu sei. Era um arigó que era uma coisa! Com ele não tinha esse negócio de 'lá vem o bicho' não! O bicho era ruim! Ele trabalhava lá no Belo Monte, lá dentro do Arauiri. Bem na boca do Arauiri era a casa dele. No dia que ele amanhecia brabo, nem galinha num vinha em casa ' (Senhor J. A., São José do Urini).


'O J. D. Silva era um patrão brabo no Juazinho, mandava matar o pessoal que devia ele. Matava como se fosse macaco. Tinha outro que era o Machado Cabeça de Onça. Era lá no Ubim que morava. Tinha aqui um velho chamado Meireles, ele sofreu muito. Quando vimos pra cá o negócio tava menos brabo' (Senhor M., Boa Esperança, Lago Amanã).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Esse imaginário sobre os patrões traduz de forma clara o papel que desempenhavam na sociedade local e na economia extrativista. Eles simbolizavam o desenvolvimento, a modernidade e eram o braço longo e frágil que o Estado utilizava para alcançar os lugares mais distantes da Amazônia. Nos anos 1970, com o declínio do comércio rural, os patrões abandonaram suas terras, tendo inicio um processo migratório cujo fluxo se dirigia para as áreas urbanas. Nesse momento, muitos povoados localizados nas áreas mais distantes, e que eram assistidos pelos patrões, deixaram de existir quando seus moradores buscaram outras fontes de renda e outros lugares para morar. Começava assim o tempo das comunidades, quando o patrão é substituído pelo Estado, na figura dos administradores municipais, os prefeitos, e mais recentemente, um novo personagem, a Reserva. Mas essa é uma outra história.

 

Conclusão


A partir dos vários depoimentos é possível conhecermos um pouco da história social dessa região da Amazônia, narrada na perspectiva dos moradores e a partir das lembranças de certos eventos que foram conservados na memória, e que foram marcantes para suas vidas. O conjunto dessas memórias permite conhecer aspectos da história do processo de ocupação humana da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Amanã, e também permite conhecer um momento da história social, econômica e ambiental da região do baixo Japurá, conhecer aspectos da história dos povoados e da trajetória de vida dos moradores mais antigos e prováveis fundadores desses povoados. São memórias que conservam a lembrança de um modo de vida que existiu no passado, das estratégias econômicas utilizadas pelas famílias para garantir sua sobrevivência, dos eventos que marcaram a vida dos grupos sociais que formaram os povoados.


Nesse trabalho, as narrativas dão ênfase a uma lembrança do passado que é pontuada pela memória da produção econômica, uma memória marcada pela fartura de recursos naturais, e pela presença da figura dominante dos patrões, alguns considerados 'brabos' e outros 'mansos'. Através dos relatos é possível conhecer aspectos da história econômica da região, destacando as principais atividades econômicas e as relações de trabalho que sustentavam o comércio rural naquele momento. No início do século XX a economia dessa região do baixo Japurá estava centrada nas atividades extrativistas como a caça, a pesca do pirarucu, a extração de seringa, sorva e madeira, e na coleta da castanha do Brasil. A dependência do comércio regional por esses produtos extrativos, e a pressão dos patrões para manter o mesmo nível de produtividade, resultou na ocupação dispersa do território que hoje é ocupado pela Reserva de Desenvolvimento Sustentável Amanã. As pessoas que trabalhavam com a extração desses produtos realizavam uma mobilidade sazonal que ocorria de acordo com o período da safra, ou fábrico. A busca por melhores oportunidades de trabalho fazia dos moradores dessa região verdadeiros nômades, sempre à procura de lugares fartos em recursos naturais extrativos de origem animal e vegetal. A mobilidade constante das famílias, sempre se deslocando em busca de locais fartos em recursos naturais, dificultava a formação e a estabilidade dos povoados, e as tornavam dependentes dos patrões que eram a base de sustentação dessa mobilidade. Os comerciantes, os patrões, financiavam a compra dos artefatos de trabalho e de mantimentos para os trabalhadores, e garantiam a subsistência dos demais membros das famílias durante as longas ausências dos homens. Eles tinham o monopólio da produção e da venda de mercadorias, e também de vastas extensões de terras.


A falência desse sistema econômico coincide com a falência do comércio rural, com a migração de muitas famílias para a área urbana, e também com a formação e estabilidade de alguns povoados localizados às margens dos rios principais. Se no passado as pessoas conseguiam produzir e morar em povoados localizados nos lugares mais inacessíveis, porque contavam com o apoio logístico do patrão, e dependiam quase que exclusivamente dele para sua sobrevivência, no presente a existência dos povoados está condicionada à sua localização às margens dos rios principais, e à assistência dos governos municipais. A localização dos povoados às margens dos rios facilita as trocas comerciais não apenas com uma pessoa, mas com vários comerciantes ou regatões que regularmente percorrem a região vendendo mercadorias e comprando produtos diversos.
As representações construídas sobre os patrões 'brabos', considerados mais tiranos porque exerciam o terror como forma de maximizar a produção, fazem parte do imaginário da população local, e traduzem de forma clara o papel que desempenhavam na sociedade local e na economia extrativista. Se, para alguns, eles simbolizavam o desenvolvimento, a modernidade e funcionavam como um porta-voz que o Estado utilizava para alcançar os lugares mais distantes da Amazônia, para outros eles simbolizavam o terror, a sujeição.


No presente, o patrão não é mais o comerciante que fazia o aviamento de mercadorias e garantia o trabalho extrativo, mas o Estado que estabelece normas e regras a serem cumpridas por aqueles que desejam permanecer na Reserva Amanã. Assim, a mudança do tempo do 'patrão brabo' para o tempo da Reserva, exige dos moradores uma série de adequações que muitas vezes podem dar a impressão de re-editar situações vivenciadas no passado. A reivindicação de direitos sobre o uso de certos territórios por parte de famílias que historicamente estão vinculadas à abertura de um lugar onde teve origem o grupo social do qual fazem parte, se depara com as regras de uso dos recursos naturais.


Decorridos quase um século, a população que habita na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Amanã tem participado como protagonista dos processos de tomada de decisão que visam o ordenamento do território, o acesso à terra e aos recursos naturais. Nesse sentido, a definição das fronteiras territoriais e a exploração dos recursos existentes nos territórios não são determinadas por um único patrão, seja ele brabo ou manso. Elas são socialmente constituídas e legitimadas através da participação e controle da população local que aderiu à proposta socioambientalista de preservação dos recursos naturais. 

 

Notas

 

1As informações que fundamentam este artigo foram coletadas em pesquisa realizada
na área focal da Reserva Amanã, através do projeto “Estudo da ocupação humana e mobilidade geográfica de comunidades rurais da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Amanã” que contou com o financiamento do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (IDSM) um órgão vinculado ao Ministério da Ciência e Tecnologia –MCT. Algumas das informações aqui apresentadas fazem parte do relatório final da pesquisa (Alencar 2007).
2A Reserva de Desenvolvimento Sustentável Amanã, doravante RDSA, é uma unidade
de conservação criada pelo governo do Estado do Amazonas através do Decreto 19.021/98, administrada pelo Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas, IPAAM, e implementada pela Sociedade Civil Mamirauá – SCM. A RDSA está localizada entre o rio Negro e o baixo curso do rio Japurá, e possui uma área total de 2.313.000 ha abrangendo terras dos municípios de Maraã, Coari, Barcelos e Codajás.
3Está previsto a publicação de uma coletânea com as histórias das localidades, através do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá.
4Os moradores onseguem estabelecer um diferença bem clara desses dois momentos quando procuram precisar a cronologia de algum evento dizendo: “nesse tempo nao tinha esse negócio de comunidade”.
5Propostas de modelos para o manejo de lagos apresentadas pelos agentes do MEB ainda na decada de 1970, foram adotadas posteriormente pelos programas de manejo desenvolvidos pelo Instituto de Desenvolvimento Sustentavel Mamirauá, órgao do MCT que administra a RDSA.
6Na região de Amanã a atividade de coleta da castanha do Brasil é conhecida como “quebrar castanha” e a atividade de extração do látex, seja da seringa, da sorva ou da balata, é conhecido como “cortar” seringa, sorva etc.
7Muitos deles haviam migrado de antigos seringais localizados nos altos rios Japurá, Juruá e Purus.
8Embarcação a remo, com vários remadores, sentados de costas para a proa.

 

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