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Gersem Baniwa e a compreensão dos Povos Indígenas no Brasil

 

 

O Índio Brasileiro: O que Você Precisa Saber sobre Os Povos Indígenas no Brasil Hoje, de Gersem dos Santos Luciano.  Coleção Educação Para Todos. Série Vias dos Saberes, volume 1. Brasília: Ministério de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade; Rio: LACED/Museu Nacional, 2006. ISBN 85-98171-57-3. Disponível em http://www.trilhasdeconhecimentos.etc.br/livros/index.htm.

Figura 1

 

Wladirson Cardoso

Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Direito – PPGD/UFPA, Bolsista CAPES

 

A civilização “branca” e ocidental abriu marcas que, em muitos sentidos, ainda não cicatrizaram. O extermínio de povos e populações inteiras é a origem da chamada questão indígena que atinge países de colonização européia e industrialização tardia como o Brasil. Neste sentido, a expansão dos territórios nacionais às expensas da cultura e do modo de vida de incontáveis grupos que aqui viviam antes do ciclo das “descobertas” é a tônica de inúmeros debates travados por antropólogos e demais cientistas sociais preocupados com o desrespeito aos direitos ancestrais dos povos indígenas.


Todavia, cometeram-se muitos equívocos teóricos em nome ciência, que acabaram por reforçar preconceitos e mal entendidos. Assim é que, durante pouco mais de cinco séculos, os povos indígenas foram vistos como “bárbaros” e “selvagens”, que, na melhor das hipóteses, precisavam ser “pacificados”. Destarte, objetivando lançar novas luzes sobre a problemática indígena no Brasil, Gersem dos Santos Luciano1 – líder Baniwa do alto Solimões e antropólogo – apresenta o livro O índio brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje. Resultado do projeto Trilhas de Conhecimentos, o livro é fruto da parceria entre a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do Ministério da Educação (SECAD/MEC) e o Laboratório de Pesquisas em Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento (LACED), ligado ao Departamento de Antropologia do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).


Nas 227 páginas de texto, Luciano descortina, mediante quadros, gráficos, imagens e mapas, as principais questões que envolvem os povos indígenas no país, debatendo temas como diversidade cultural, organização tradicional, territorialização, cidadania, educação e saúde indígenas. De acordo com Luciano, a oportunidade de pronunciar-se acerca de questões que ele conhece diretamente abre novas perspectivas no debate interno, em vista de sua compreensão sobre os povos indígenas no Brasil atual. Neste sentido, Gersem Luciano é autoridade no assunto, pois a experiência das vicissitudes da militância no/pelo movimento indígena permitiu-lhe uma “visão mais ampla das realidades e das problemáticas vividas pelos povos indígenas da Amazônia e do Brasil. Essas vivências, somadas à experiência local, foram decisivas para o profundo e incondicional compromisso com a luta indígena no Brasil e no mundo (p. 22).”


Portanto, em se tratando das discussões em torno dos interesses dos povos e comunidades indígenas que compõem o cenário multicultural do Estado democrático brasileiro, não se pode, sobremaneira, deixar de considerar a importante contribuição de Luciano para a análise política da dignidade da pessoa e da humanidade indígena. O ponto de vista de alguém que compreende a questão a partir da própria existência como índio e, também, a partir da militância, consubstancia-se numa interpretação de primeira ordem, que, segundo Geertz (1989), só é possível quando a análise cultural do universo simbólico de outros grupos humanos é realizada pelos próprios agentes socialmente envolvidos.


De acordo com Luciano (p. 27),

 

“falar hoje de índios no Brasil significa falar de uma diversidade de povos, habitantes originários das terras conhecidas na atualidade como continente americano. São povos que já habitavam há milhares de anos essas terras, muito antes da invasão européia. Segundo uma definição técnica das Nações Unidas, de 1986, as comunidades, os povos e as nações indígenas são aqueles que, contando com uma continuidade histórica das sociedades anteriores à invasão e à colonização que foi desenvolvida em seus territórios, consideram a si mesmos distintos de outros setores da sociedade, e estão decididos a conservar, a desenvolver e a transmitir às gerações futuras seus territórios ancestrais e sua identidade étnica, como base de sua existência continuada como povos, em conformidade com seus próprios padrões culturais, as instituições sociais e os sistemas jurídicos.”

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Nestes termos, o autor, ao indicar o que precisamos saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje,oferece ao leitor uma inédita introdução à história de luta e resistência dos, aproximadamente, “220 povos indígenas – falantes de 180 línguas, com cerca de 734 mil indivíduos (0,4% da população brasileira)” (p. 13). Em que pese o reconhecimento e a proteção jurídica da lei dos brancos, no tocante aos dispositivos normativos contidos na Convenção Nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e nos artigos 231 e 232 da Constituição Federal de 1988, Luciano (p. 87)
escreve que:

 

“(...) os povos indígenas conquistaram a possibilidade de ter acesso às coisas, aos conhecimentos e aos valores do mundo global, ao mesmo tempo em que lhes é garantido o direito de continuarem vivendo segundo tradições, culturas, valores e conhecimentos que lhes são próprios. No entanto, esses direitos estão longe de serem respeitados e garantidos.”

 

 

 

 

 

 

 

Muito embora o sistema jurídico nacional garanta aos povos indígenas o direito à vida e à igualdade nas mesmas condições e oportunidades que a legislação outorga aos demais brasileiros, garantindo “aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam” (cf. Art. 231, § 1º)2, Luciano destaca que ainda há muito a conquistar, de modo que os obstáculos impostos à plena realização da autonomia indígena no país implicam na superação de preconceitos e estereótipos que decorrem de visões etnocêntricas e parciais.


Ensaiando análise crítica no sentido de desconstruir as imagens distorcidas provocadas pelas lentes do colonialismo europeu, Luciano repensa as trilhas sobre as quais a identidade indígena reelabora suas práticas e valores. Portanto, atualizando o debate em torno do ser índio e atravessando os limites da epistemologia ocidental, o autor mostra que o índio no Brasil de hoje deve estar atento para os simulacros de opinião que se criam em torno de seu protagonismo, em vistas da inclusão social e, principalmente, do respeito à diversidade. Para Luciano (p. 96): “no discurso político e social contemporâneo, os avanços alcançados pelos povos indígenas do Brasil podem ser definidos como o início de processos de autonomia com grandes possibilidades futuras. Por suas características, a autonomia indígena não tem semelhanças. Trata-se de uma autonomia que se fundamenta na vontade de interagir, de participar e de não excluir componentes culturais e políticos diversos, com potencial para resguardar e defender direitos que atendam a todos, desde a ação de governos locais, ou a de organizações autônomas. Com efeito, as experiências dos povos indígenas brasileiros, visando defenderem seus direitos territoriais autogestados, suas culturas e conhecimentos tradicionais, mostram em seu conjunto o avanço de uma luta própria que deve ser entendida como um esforço transformador da sociedade. Não existe um modelo acabado de autonomia indígena pós-colonial, porém há experiências de gestão territorial e de projetos sociais que configuram entes de oposição ao Estado excludente que tem insistido em ignorar os povos indígenas como herdeiros dos povos originários. Deste modo, as características e as possibilidades de autonomia dos povos indígenas do Brasil dependem de três conceitos e práticas políticas inseparáveis: multiculturalidade, autonomia e sustentabilidade.”
De acordo com Luciano, a luta política pelo reconhecimento dos direitos indígenas e pela inclusão social, deve considerar, justamente, os valores da multiculturalidade, da autonomia e sustentabilidade como espécie de tripé que não apenas fundamenta o auto-entendimento, mas também orienta a práxis do movimento social indígena. Logo, a multiculturalidade consiste na percepção de outros modos de vida e de representação do mundo; ao passo que a autonomia é o princípio ético que deve mediar as interações entre as diversas culturas, no horizonte de contextos que visam à sustentabilidade como resultado da manutenção dos grupos sociais.


O reconhecimento dos direitos indígenas e o respeito à diversidade dos povos originários são temas transversais que sustentam a argumentação de Luciano nos oito capítulos que compõem a obra. Ora, as conquistas obtidas pelo movimento indígena não são gratuitas e nem se esgotam na proteção jurídico-constitucional do acesso à terra, pois há outros direitos que requerem cuidados especiais como a saúde e a educação. No tocante ao primeiro, Luciano (p. 183) destaca que:

 

 

“a experiência dos distritos e a execução de ações de saúde propiciaram uma interação mais respeitosa entre o Estado brasileiro e os povos indígenas, além do fortalecimento institucional e administrativo das entidades indígenas no manejo de políticas públicas e na apropriação por parte dos líderes de conceitos, metodologias e práticas sanitárias que são indispensáveis à busca da desejada eqüidade no acesso aos serviços de saúde”.

 

Porém, relativamente ao segundo, a grande polêmica atualmente:
“gira em torno da política de cotas nas universidades brasileiras. Enquanto a discussão está acontecendo na sociedade como um todo e no Congresso Nacional em particular, a partir de um projeto de lei de autoria do Poder Executivo que visa instituir o sistema de cotas, algumas universidades públicas e privadas já se anteciparam e puseram em prática as idéias de cotas, gerando tensas discussões nos meios políticos e acadêmicos. Essa resistência já era esperada, se considerarmos o secular sistema educacional brasileiro profundamente excludente, discriminador e colonizador” (p.163).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Na opinião de Luciano, a cultura acadêmica brasileira sempre esteve atrelada ao processo de dominação e colonização dos povos e sociedade indígenas, uma vez que o sistema escolar e, principalmente, as universidades historicamente mantiveram as portas cerradas para índios e negros, o que justificaria a reação às políticas de ação afirmativa e, particularmente, às cotas. Destarte, Luciano pondera que a proposta de ingresso de estudantes indígenas, bem como de estudantes negros nos cursos de graduação, quer seja mediante cotas, quer seja por meio de reserva de vagas, é a opção político-ideológica que a sociedade brasileira tem de assumir, se quiser combater a exclusão, a injustiça e a violência.


Para Luciano (p. 164):

 

“o grande nó é que essa decisão teoricamente deveria ser da sociedade brasileira, mas na prática passa por uma minoria da elite que manipula a consciência da maioria, porque detém o poder político e econômico e todo o aparato instrumental à sua disposição, como os meios de comunicação de massa, a tecnologia e o próprio sistema educacional estabelecido. A esperança é a de que, apesar do poder manipulador das elites, a sociedade brasileira – representada por alguns políticos decentes e compromissados com o bem-estar social de todos – consiga vencer o preconceito, o racismo, a intolerância e a prepotência de poucos.”

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Entretanto, apesar da agenda política do Estado brasileiro ainda não ter cumprido totalmente as metas que se determinou a partir da Constituição Federal de 1988 e da dívida histórica do ocidente para com os povos indígenas, o autor destaca que a contribuição dos índios para o Brasil e para demais países compreende da transmissão de conhecimentos técnicos à redefinição de práticas culturais. Nestes termos, os povos indígenas superam a trágica possibilidade de extinção. O autor ensina que ser indígena no Brasil de hoje é ter esperança no futuro, pois, a despeito do temor do branco “civilizado”, os saberes e conhecimentos indígenas, assim como a própria pessoa do índio está sendo cada vez mais valorizado, pois a questão relativa à permanência das comunidades indígenas ao longo do país requer o exercício do diálogo intercultural.

 

Notas

 

1Em 13 de setembro de 2007, foi aprovada pela Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), a Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas, tendo o Brasil como país signatário.


2De acordo com Clifford Geertz (1998), as sensibilidades jurídicas referem-se aos significados emanados do campo jurídico- legal; traduzem conceito(s) de justiça específico(s), sentido(s) de Direitos particular(es) a cada cultura, variando conforme o saber local.

 

Referências Bibliográficas


Brasil. Constituição Federal de 1988. 2002. São Paulo: Saraiva 29ªed.


Carneiro da Cunha, M. 1987. Os direitos dos índios: ensaios e documentos. Brasília: Brasiliense.


Geertz, C. 1989. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC.

 





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