Arqueologia da Amazônia Ocidental: os Geoglifos do Acre
Denise Schaan, Alceu Ranzi, Marti Parsinen (Orgs.). Belém: EDUFPA , Rio Branco: Biblioteca da Floresta Ministra Marina Silva, 2008. ISBN 978-85-247-0428-4. |
Manuel Calado
Universidade de Lisboa
Tive o privilégio de assistir ao lançamento desta obra, na Biblioteca da Floresta (Rio Branco), no verão de 2008. Testemunhei, assim, o elevado interesse com que ela foi recebida pelo público presente, traduzido numa participação muito ativa, por vezes emocionada, de pessoas de diversas áreas da cultura e da política locais. O tema central deste trabalho - os “geoglifos” - se vier a ser bem aproveitado, poderá com certeza assumir uma importância significativa no desenvolvimento sustentável da economia da Amazônia Ocidental, em termos turístico-culturais.
A história destes monumentos é aqui contada a várias vozes e sob diferentes perspectivas. O livro, que possui um cuidadoso aspecto gráfico, abre com uma apresentação do Governador do Estado do Acre, licenciado em História e, também por isso, muito bem colocado para entender o que está sendo discutido: mostra que as instituições estão vivamente interessadas em construir as pontes necessárias entre os interesses estritamente culturais e científicos e os interesses mais complexos de uma sociedade democrática.
Depois de uma introdução esclarecedora, assinada pelos organizadores, a Professora Denise Schaan traça, de forma muito pedagógica, um quadro geral sobre a história da investigação arqueológica no Estado do Acre, com uma focagem mais aprofundada no tema dos “geoglifos”. Para além dos dados de carácter historiográfico, esse texto resume o estado atual da pesquisa, sintetizando as principais problemáticas com que ela terá que lidar no futuro. Entretanto, além desta síntese, o livro recuperou seguidamente alguns textos fundamentais, já publicados, mas, por diversas razões, de difícil acesso.
Um destes – o primeiro texto publicado sobre os monumentos acreanos – é da autoria do Professor Ondemar Dias (em parceria com Eliana Carvalho) que, nos tempos pioneiros do PRONAPABA (já com a participação, como estudante, do Professor Alceu Ranzi) colocou a primeira pedra no edifício. Trata-se de um artigo publicado em 1988, com algumas observações e hipóteses interessantes para a interpretação funcional dessas estruturas de terra.
O livro reedita também um texto de Alceu Ranzi e Rodrigo Aguiar, publicado numa discreta revista portuguesa de arqueologia, de vocação regionalista, em que os autores colocam diversas questões de fundo, de que as mais interessantes serão, a meu ver, aquelas que derivam da relação entre os “geoglifos” e a paisagem.
O Professor Alceu Ranzi foi, indiscutivelmente, o principal divulgador destes vestígios, desempenhando, neste processo, um papel inestimável na sensibilização das populações e dos seus representantes políticos, atendendo à sua dupla condição de acreano e investigador universitário. Note-se que, para além da dimensão científica, tendencialmente neutra, o Patrimônio tem implicações afetivas que justificam, em parte, o seu reconhecimento social.
Num registro mais arqueológico e revelando, aliás, um bom conhecimento da bibliografia científica pertinente, segue-se na obra um artigo (publicado anteriormente em inglês), da autoria de investigadores da Universidade de Helsinque (com a colaboração de Alceu Ranzi). Os autores, coordenados pelo Professor Martti Pärssinen, cuja investigação se tem centrado, há já alguns anos, em temas relacionados com o contexto macro-regional, nos países vizinhos, desenvolvem aqui algumas hipóteses relacionadas com a complexidade social na terra firme amazônica, recorrendo à análise das fontes históricas, traçando uma síntese da agenda da arqueologia amazônica, nas últimas décadas, e articulando essa revisão com a primeira (e única, até ao momento) datação radiocarbônica disponível para os “geoglifos” do Acre.
Em seguida, Denise Schaan relata a sua experiência num projeto de Arqueologia de Salvamento que teve como objetivo a proteção do patrimônio arqueológico, em função dos trabalhos de implantação de uma linha de transmissão de energia elétrica. O artigo serve também de pretexto para a autora apresentar e discutir os fundamentos legais deste tipo de intervenções, assim como a sua aplicação concreta. Infelizmente, nem sempre existe uma perfeita compreensão, por parte das entidades promotoras de projetos de desenvolvimento, da importância da salvaguarda do patrimônio cultural, mesmo quando – e foi esse o caso – se trata de empresas governamentais.
Finalmente, no que diz respeito aos artigos, temos um interessante exercício de articulação entre etnografia e arqueologia, que é, aliás, uma caraterística recorrente na investigação amazônica: Pirjo Virtanen, investigadora finlandesa, procura desvendar os eventuais fios condutores entre os “geoglifos” e os povos indígenas da região, em particular os Manchineris (do tronco Aruak). Esses links, ainda certamente muito frágeis, poderiam, segundo a autora, encontrar-se na valorização econômica e simbólica das palmeiras – frequentemente encontradas associadas aos “geoglifos” -, na existência de terreiros de dança, na tradição Manchineri, assim como na lenda de que esse povo escavaria esconderijos, para se proteger de inimigos.
Com a finalidade de contextualizar arqueologicamente os “geoglifos”, o livro fornece ainda uma relação com todos os sítios arqueológicos conhecidos no Estado do Acre e, em anexo, apresenta uma Recomendação do Ministério Público sobre a proteção do Patrimônio Histórico-Arqueológico, assim como uma extensa Documentação Fotográfica com os principais monumentos.
O leitor terá certamente reparado nas aspas que usei sempre que mencionei a palavra “geoglifos”; na verdade, na minha opinião, essa designação não será a mais adequada, embora se trate, evidentemente, de uma opção compreensível. De resto, o Professor Alceu Ranzi deixou bem expresso que escolheu ela porque “os geoglifos de Nasca, Peru (…) tornaram-se famosos no mundo todo por sua beleza e mistério” e a proximidade geográfica entre o Acre e o Peru suportam, naturalmente, esta associação. Não esqueçamos que Alceu Ranzi, acreano de alma e coração, se tem empenhado na divulgação e promoção de um patrimônio que indiscutivelmente o merece.
Na minha opinião, os monumentos do Acre apresentam diferenças notórias, em relação aos verdadeiros geoglifos: não existem aqui os característicos desenhos zoomórficos de Nasca e estes, por outro lado, não implicaram o enorme esforço “construtivo” que está patente em muitas das estruturas de terra amazônicas. É certo, porém, que, nos Estados Unidos da América (nomeadamente no Ohio), existem construções de terra representando figuras zoomórficas que, de algum modo, poderiam fazer a ponte entre as do Acre e as de Nasca.
Por outro lado, tanto o descobridor dos “geoglifos”, Ondemar Dias, como os investigadores finlandeses, usam designações distintas (e muito mais genéricas): “estruturas de terra”, no primeiro caso, e “construções geométricas de terra”, no segundo.
Note-se que uma das características mais notadas nos recintos do Acre, é precisamente a posição relativa da mureta e da valeta, aparentemente inversa daquela que uma finalidade defensiva faria supor: a valeta fica sistematicamente no interior do espaço delimitado pela mureta. Este detalhe permite estabelecer uma analogia com os famosos henges das ilhas britânicas, de que o mais conhecido é precisamente Stonehenge.
Nesse caso, as interpretações arqueológicas – baseadas em diversos tipos de evidências – têm privilegiado o caráter cerimonial dos recintos, reforçado quase sempre pela presença de construções megalíticas associadas.
Porém, para além dos henges, existem na Europa milhares de recintos, pré e proto-históricos, delimitados por sistemas de muretas e valetas (bank and ditch), desde Portugal à Ucrânia e desde a Escandinávia à Itália. Embora as questões funcionais não estejam definitivamente arrumadas, pode afirmar-se, sem grande margem de erro, que estamos em presença de uma forma de construir e que, com ela, se fizeram diferentes tipos de construções, com finalidades distintas: algumas, como os referidos henges, delimitam espaços claramente cerimoniais; outras, como as do Sudeste da Itália (Tavolieri) ou do Sul da Península Ibérica, são claramente estruturas defensivas, protegendo povoados. Saliente-se, nesta última região, a existência de recintos defensivos com áreas superiores a 100 ha.
Com isso, o geometrismo dos “geoglifos” do Acre não pode excluir o seu carácter arquitetônico: na verdade, círculos e polígonos regulares (sobretudo quadriláteros) são figuras geométricas geralmente utilizadas na arquitetura, tanto sagrada, como profana, um pouco por todo o mundo.
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