O rancho e o bote. Micropolíticas das tecnologias e das sustentabilidades entre os trabalhadores da pesca na ilha de Santa Catarina
Universidad Nacional de Tres de Febrero, Argentina
O RANCHO E O BOTE. MICROPOLÍTICAS DAS TECNOLOGIAS E DAS SUSTENTABILIDADES ENTRE OS TRABALHADORES DA PESCA NA ILHA DE SANTA CATARINA
Resumo
Este artigo é uma interpretação antropológica dos desdobramentos da relação entre tecnologias e práticas identitárias dos trabalhadores da pesca em botes a motor na Ilha de Santa Catarina. Resultado de uma etnografia audiovisual realizada desde 2004 até 2011, o texto aborda formas simbólicas da cultura que operam no processo de construção de um motor e as modalidades de sociabilidade que surgem deste processo. Partindo das narrativas audiovisuais construídas em conjunto com o grupo pesquisado e suas implicações como “tecnologia” (e como "ciência nativa"), aborda-se o lugar privilegiado que ocupa este “artefato”, elaborado no trabalho dos pescadores, e as atualizações culturais que indexaliza.
Palavras-Chave: Pesca, tecnologia, identidade
THE RANCH AND THE BOAT. MICROTECHNOLOGIES AND SUSTAINABILITIES AMONG FISHING WORKERS ON THE ISLAND OF SANTA CATARINA
Abstract
This paper is an anthropological interpretation of the unfolding of the relation between technologies and identitarian practices of the workers of small motor fishing industry in the island of Santa Catarina. It's the outcome of an audiovisual ethnography carried on from 2004 until 2011. The paper approaches symbolic forms of culture which operate in the process of construction of an engine, and the forms of sociability that result from the process. Based on the audiovisual narratives constructed in a participative way with the research group, their implications as “technology” (and as "native science"), we approach the cultural place of this “artifact” elaborated in the work of the fishermen and the cultural actualizations that it indexes.
Keywords: Fishing, technologies, identity
EL RANCHO Y EL BARCO. MICROPOLÍTICA DE LAS TECNOLOGÍAS Y LAS SUSTENTABILIDADES ENTRE LOS TRABAJADORES DE LA PESCA EN LA ISLA DE SANTA CATARINA
Resumen
Este artículo es una interpretación antropológica de los desdoblamientos de la relación entre tecnología y prácticas identitárias de los trabajadores de la pesca de botes a motor en la Isla de Santa Catarina. Resultado de una etnografía audiovisual realizada desde 2004 hasta 2011, el texto aborda las formas simbólicas de la cultura que operan en el proceso de construcción de un motor y las modalidades de sociabilidad que surgen de ese proceso. Partiendo de las narrativas audiovisuales construidas en conjunto con el grupo investigado y sus implicaciones como “tecnología” (y como “ciencia nativa”), se aborda el lugar privilegiado que ocupa este “artefacto”, elaborado en el trabajo de los pescadores, y las actualizaciones culturales que indexaliza.
Palabras-Clave: Pesca, tecnología, identidad
INTRODUÇÃO
“A cultura não é uma variável; a cultura é relacional, ela está em outro lugar ou de passagem, ela está onde o significado é tecido e renovado, frequentemente em lacunas e silêncios, e de forças que escapam ao controle consciente dos indivíduos.” (Fischer 2011: 68)
Este artigo iniciou-se em julho de 2009, na tarde em que fui convidado a acompanhar a construção de um motor destinado ao bote de pesca Osso de Baleia. Cerca de dois anos antes, eu havia combinado com o comandante desse bote fazer um filme na Ilha de Arvoredo, um espaço protegido pelo Estado e proibido para a pesca por ser um parque natural, e, para onde iríamos, como em 2006, desafiando normas de preservação ambientais (essas imagens integraram o documentário Caminhos da comunidade). Desde então, eu aguardava a nova viagem, sem sucesso. Finalmente tinha sido chamado, mas antes devia aguardar a construção de um novo e “poderoso” motor destinado a ser colocado no bote, e que nos levaria e traria de volta no mesmo dia, diminuindo os riscos da aventura e maximizando as condições de pesca. Decidi filmar esse processo com o objetivo de pensar os papéis sociais acionados através da manipulação de tecnologias que organizam uma das principais modalidades de pesca entre grupos sujeitos, hoje, a demandas de “sustentabilidade” crescentes. A esta experiência, somei, no ano de 2011, e sem saber que iria me ajudar pensar a primeira, a observação participante (audiovisual) junto com um grupo de pescadores de rede de arrasto de praia durante a safra da tainha. Assim, primeiro os pescadores de bote da Barra da Lagoa, e depois os “camaradas” da Praia da Joaquina confluíram para produzir esta reflexão. Finalmente, todos eles habitam esse espaço de fronteira entre terra e mar, na bacia da Lagoa da Conceição, no leste da Ilha de Santa Catarina (Figura 1).
Considerando que o conceito de sustentabilidade tem, como pano de fundo, uma derivação no discurso político e opera atualizando condições práticas de existência que exclui sujeitos (e famílias) das promessas do Estado, eu devia, isso sim, desconstruir esse conceito se efetivamente queria “recuperar a economia política para a análise cultural”, como disse Fischer (2009:75). E, se, por um lado, esta recuperação solicita ser entendida pela antropologia em termos de respostas de sujeitos e grupos sobre as demandas tecnológicas e sobre as formas do trabalho e da produção, ela exige uma reflexão crítica também em termos de um “problema” emergente da demanda implícita do “progresso”. Progresso que, ameaçado pela incerteza e a insegurança das tecnologias modernas, acha uma palavra de ordem, precisamente hoje, sob o termo “sustentabilidade”. Os rápidos progressos da tecnologia apoiam-se no signo de uma ambiguidade fundadora: concorrem para aumentar o bem-estar social, porém ameaçam a existência da vida sobre o planeta.
O objetivo deste artigo é o de compreender, por intermédio da experiência etnográfica audiovisual, que iniciei naquele momento como sociomontagem coletiva (Godio 2006) em relação a estes conceitos, os endereçamentos socioculturais das tecnologias nos universos do trabalho da pesca e o quanto seus usos e apropriações podem exprimir da relação homem-natureza. Estas apropriações foram manipuladas e geridas no roteiro que me propuseram realizar com os protagonistas dos documentários realizados em 2005 e em 2009. E, quando acompanhei a safra da tainha em 2011, ficou em evidência que a instrumentalidade do vídeo para os integrantes do rancho se vinculava diretamente com veicular uma reflexão sobre os dispositivos de promoção de “humanismos” e “sustentabilidades” ambientais, enfaticamente defendidos pelos poderes do Estado.
Figura 1 – Bacia da Lagoa da Conceição, Ilha de Santa Catarina, Brasil
Entretanto, as possibilidades reais de produzir um conhecimento sobre o papel social e cultural destes conceitos dependem de compreender uma presença – também como ausência – que revela muito mais do que um modelo de apropriação e “adequação” de grupos historicamente identificados pelo mercado como “insuficientemente produtivos” ou “despreparados” para responder a lei da oferta e demanda. Supõe, também, entender as consequências micropolíticas da “busca” pelas certezas e a sustentabilidade, e em grande medida, sua relação de dependência com a ciência instituída.
A emergência da complexidade de um personagem pouco explorado na antropologia da pesca como o atravessador é uma entre tantas observações relevantes dos processos de montagem social audiovisual das experiências etnográficas realizadas junto aos dois grupos de pescadores que intervém neste texto. Esta montagem teve a finalidade de nos aproximarmos de um universo de práticas e representações que relacionam tecnologias e meio ambiente no contexto da pesca não industrial. O resultado foi uma encenação “ideal” dos elementos que compõem esses mundos particulares.
POR QUE PENSAR AS TECNOLOGIAS?
Desde o utopismo de Fourier e da primigênia antropologia cultural de Tylor até as visionárias sociologias de Marx e Durkheim, as “tecnologias” – como técnica e como logos - foram objetos fundamentais para a reflexão social, cultural e econômica das sociedades estudadas. Entre outras dimensões, as tecnologias a que o homem tinha acedido ao longo da história – em especial aquelas que a modernidade trazia – permitiam ancorar materialmente conceitos chaves como coesão, progresso, conflito ou mudança social. Enquanto Weber complexificava esta reflexão, ao adiantar o lugar da burocracia como “aparelho tecnológico”, abrindo o foco para a agência e o papel dos especialistas, Benjamin compreendia as bases expressivas da indústria cultural como espaço potencialmente critico e reversível em que as tecnologias eram elementos de tensão. No mesmo período, a antropologia refazia-se com a moderna etnografia de Malinowski, onde as “tecnologias” virariam fontes de classificação, o que as transformavam em experiências práticas e simbólicas de interpretação da práxis nativa sobre o mundo e a natureza.
Foram estas perspectivas as que permitiram identificar os papéis socialmente relevantes das tecnologias e organizaram grande parte das análises em que eram incluídas nas ciências sociais durante as décadas subsequentes. Assim, a função de medida e validação instrumental deste conceito – reitero, como técnica e como logos – marcava o modelo clássico e as grandes linhas do pensamento social. Por outro lado, os limites instrumentais somavam-se à dificuldade de encaixar o novo perspectivismo mitológico com que Lévi-Strauss deslocava a questão da tecnologia para uma crítica do conceito dominante de história e para a análise da estrutura inconsciente dos processos cognitivos. Em consequência, as tecnologias permaneceram como um conceito difuso e, desde o surgimento da crítica às “grandes narrativas” – que o próprio estruturalismo sofreria – fortaleceu-se definitivamente a dominância das “ciências duras” no controle do mesmo. Deste modo, as tecnologias a serem “produzidas”, material e simbolicamente, permanecem no contexto do saber científico cujo modelo é a formalização e unificação axiomática neopositivista, e que ainda prevalece no domínio das instituições de conhecimento (e financiamento).1
Neste contexto, hoje, são diversos os estudos sobre o mundo do trabalho nas chamadas “sociedades tradicionais” – e as modalidades que assumem no mercado e na concorrência – que se montam sobre o problema colocado pelas instituições científicas em torno do uso que essas fazem ou “deveriam fazer” das velhas e novas tecnologias à sua disposição para fazer eficaz, segura e controlável sua participação neste.2 E, se esta demanda avança hoje como paradigma de uma política social vigorosa, que tem como objeto colocar os Estados ao serviço das práticas de grupos subalternos ou informais, fica evidente também que há consciência da necessidade de construir um tipo de re-conhecimento crítico dos papéis do conceito “tecnologia” em contextos locais que as re-significam e manipulam, em um processo que as articula etnogenicamente (Sahlins 1997, 2006). Essa articulação se dá junto com as demandas presentes em uma economia política capitalista com pretensões hegemônicas nas instituições e marcada pelas dinâmicas de homogeneização e desenvolvimento desigual da alta-modernidade (Giddens 1991).
Portanto, há uma démarche nas pesquisas em Ciências Sociais prestes hoje a reinventar perspectivas através das quais as “tecnologias” possam ser pensadas como “projeto nativo” em contextos mercantis experimentados por grupos e sujeitos que não se ajustam a esse modelo. A trajetória da antropologia obriga a buscar maleabilidades em grupos e sujeitos que gerem e organizam originalmente sua relação com artefatos aparentemente contraditórios (uma imagem que a própria disciplina tem contribuído para construir). Apesar de estarem presentes os riscos próprios dos discursos de “indigenização” (Kuper 2003) e de integração “pacífica” de grupos e sujeitos ao contexto global, as representações e usos das tecnologias também colocam no horizonte de debate as capacidades sociopolíticas de sujeição dos mesmos – incluídas as ciências sociais – às novas narrativas dominantes.3
As adaptações e mudanças tecnológicas na atividade dos pescadores não industriais têm sido objeto de muitas pesquisas e há um acordo no sentido de considerar a capacidade de desenvolver uma ecologia cultural em termos de relações de especialização e identidade, uma vez que o meio marítimo exige adaptação a diversas sazonalidades e ciclos bioambientais (Chaveau & Jul-Larsen 2000:29). Constata-se, por exemplo, que nas últimas décadas “os grandes progressos na tecnologia das fibras, junto com a introdução de outros materiais modernos, tem feito possíveis mudanças no desenho e no tamanho das redes de pesca” (Hanazaki et al. 2007: 2).
Trata-se, portanto, de pensar com um olhar etnográfico aquilo que, formalmente, nos estudos das tecnologias em ciências sociais, chamam hoje de translação, termo com que se pretende analisar as relações “adaptativas” do entorno que é objeto da transferência tecnológica (Encabo 2004). Assim, o conceito de inovação cultural que sobejasse a este modelo de interpretação da transferência característicos dos CTS,4 é definido por processos etnogênicos de tradução e representação habilitados na práxis como narrativas constante e historicamente elaboradas e atualizadas pelos atores (Sahlins 2006). Uma práxis que, ao mesmo tempo, naturaliza-se, muitas vezes, nessa experiência e nas condições econômicas e políticas em que toma forma. Efetivamente, a, já distante no tempo, introdução de uma tecnologia aparentemente obsoleta desde as novas problemáticas da sociedade contemporânea, como o motor, é meio de interpretação e ação dos atores sobre sua relação com o mundo.
SOBRE OS RANCHOS, CANOAS E BOTES DE PESCA
Há um aspecto fundamental que se manifesta sob uma dimensão técnica nas estratégias de pesca e que define estes pescadores como uma categoria profissional denominada “artesanal”, e que, invariavelmente, relaciona tecnologias com meio ambiente. Trata-se da especificidade dos métodos de captura dos recursos e a especialização das técnicas utilizadas para determinados cardumes, segundo épocas do ano e lugares determinados. Enquanto fenômeno reconhecido como parte das práticas sobre a natureza, a categoria “artesanal” define também a dimensão cultural do trabalho e de uma “identidade comunitária” construída ao longo das décadas em relação ao Estado que regula essa atividade. A par da coesão necessária no que diz respeito à dinâmica das unidades domésticas e dos laços comunitários mais amplos em que esta pesca se constitui, as estratégias de captura são partes constitutivas da dimensão social das tecnologias utilizadas na pesca que “puxam moralmente” para a diferenciação destes grupos, daqueles pescadores denominados “industriais”.5
Desde finais da década de 1970 no litoral de Santa Catarina, a chamada “pesca artesanal”,6 estruturada em torno ao rancho de pesca de praia7 vem sendo re-significada pela presença cada vez mais importante dos botes a motor do “mar de fora”. Estas embarcações foram introduzidas rapidamente na pesca do litoral sul como consequência direta da experiência de vida e trabalho dos pescadores “catarinas” em outros pontos do Brasil, especialmente em Rio Grande, Santos e Rio de Janeiro. A incorporação da tradição marítima do litoral de Santa Catarina tinha acontecido entre as décadas de 1940 a 1960 do século passado, um fenômeno que Diegues define como “a conversão mais rápida no Brasil do trabalho da terra para o mar”. Durante décadas, os “catarinas” foram povoando diferentes portos do litoral brasileiro e alimentando, com sua mão de obra e suas reconhecidas habilidades e conhecimentos, uma indústria que se encontrava em rápida expansão econômica (Diegues 2004).
Foi então quando os primeiros pescadores regressaram a seus lares, para morar, casar e trabalhar nas comunidades de origem, no final da década de 70 e início da década de 80 do século passado, que começou a pesca com os chamados “botes a motor” tal qual ocorre hoje em dia em muitas das praias e comunidades de pescadores de Santa Catarina. As narrativas dos trajetos migratórios de uma boa parte dos interlocutores da presente pesquisa indicam claramente que esse fenômeno de introdução foi muito regular e estruturante das transformações das comunidades de pescadores (Rial 2006, Godio 2006). Como também explicitara Diegues (1983, 1995, 1998), a aparição dos botes a motor instituiu uma nova formação de trabalhadores da pesca, organizada em unidades de produção independentes, mas com uma forte participação do grupo doméstico. Neste processo, os recursos da pesca passaram de ser um bem da comunidade para ser um produto para o mercado, entrando cada vez mais em colisão e conflito com as questões vinculadas à preservação do meio ambiente, e se aproximando das problemáticas da indústria.
Simultaneamente, as unidades domésticas se veem fortalecidas com a fragmentação comunitária favorecida pelos botes a motor, organizadas agora na trama social e cultural dos households (Netting, Wilk & Arnould 1984). Ampliando e reduzindo sua extensão a outros membros da família – e da comunidade- dependendo das necessidades e demandas, o household cria condições estruturais com que a família pode assegurar sua existência através de estratégias de circulação das atividades do trabalho, produção e consumo. Trata-se de “uma determinada forma de conceber o mundo, de se relacionar com a natureza, de se organizar social e politicamente e de exercer a vida cotidiana” (Balazote & Radovich 1992: 28) e, portanto, de um modo de socialização que pode ser entendido como um processo contínuo de “negociação” ou de “luta” pela definição ou redefinição dos valores e “sentidos” sociais e culturais para a unidade familiar.8
Os botes reagrupariam assim a “unidade cultural” em torno às famílias estendidas. Esta reformulação da organização do trabalho estruturou-se sobre a dinâmica dos botes, que substituíram rapidamente a pesca com canoas a remo tradicionais, e aumentaram a capacidade de atingir maiores profundidades e manipular o comprimento das redes em um meio cada vez mais afetado pela pesca industrial. Ampliando assim os períodos de safras tradicionais das diversas espécies (tainha, corvina, anchova, abrótea, etc.), favoreceu a definitiva substituição da economia de subsistência baseada na “roça”. Lembremos que, em condições climáticas ideais para a navegação, a canoa era uma embarcação limitada que apenas conseguia atingir as ilhas próximas à costa.9
Os botes substituem também rapidamente a “pesca de arrasto de praia”, realizada com canoas ou bateras na orla. Esta formação social transformou-se em via de produção vinculada à dinâmica do mercado, articulando este universo “externo” com a realidade de sociedades cada vez mais fragmentadas no que se refere a suas formas de organização que, num excesso de culturalismo, chamamos usualmente de “comunitárias”. Em primeiro lugar, ao serem gerados, através dos botes, novos processos de concentração das redes, botes, ranchos e meios de produção e comercialização e, em segundo lugar, ao dividir a produção comunitária entre “pescadores do rancho” (fundamentalmente de “arrasto de praia”), proprietários e tripulantes de pequenos botes a motor, e, por último, trabalhadores expulsos de barcos pesqueiros industriais sem trabalho.10
Contudo, há também formas de continuidade entre ambos os tipos de formações sociais de pesca. Tal como acontece na pesca da corvina e da anchova ou tainha, no bote – ocupado geralmente por quatro ou cinco pescadores – as tarefas e a renda da pescaria são distribuídas segundo a lógica do “quinhão”, antigo mecanismo ainda presente com que se dividem os recursos capturados nos ranchos de pesca. 50% do peixe capturado no dia ficam nas mãos do(s) dono(s) da rede e do bote, enquanto o resto é distribuído em partes iguais para os tripulantes, correspondendo duas a quem detenha a posição de comandante. No rancho de praia essa lógica se reproduz com muita exatidão. Porém, diferentemente dos botes, cujos recursos serão destinados para o mercado imediatamente depois do atraco no trapiche, dentro do rancho – onde também são muitas vezes as mulheres as responsáveis por conduzir a cerimônia de distribuição – não são unicamente aos camaradas, mas também aos que ajudam a “puxar a rede” durante as cercadas e outros integrantes marginais do grupo como velhos pescadores aposentados ou crianças de famílias que passam necessidades, que recebem parte da “pescaria”.11
Ainda que seja possível afirmar que estas representações de continuidade na categoria “artesanal” servem ao mascaramento da “plusvalia” do trabalho dos tripulantes nos botes a motor de diferente porte, “elas expressam muito mais do que isso: a delicadeza e a complexidade dos riscos que entretecem a prática de diferenciação, a construção e reconstrução contínua das identidades dentro dos códigos acessíveis de ‘legitimidade’” (Dias Duarte 1999:263). Isso porque, apesar de se atualizarem em aspectos de seu saber técnico, supõem também uma dinâmica de hierarquias objetivadas tanto no próprio trabalho como na distribuição moral dos lucros que ainda servem como parâmetros para os botes a motor, os quais, por sua vez, entram em conflito permanente com os ranchos de pesca nos períodos de maior convivência, especialmente durante a “safra da tainha”, quando os espaços de praia, próximas a quebra das ondas, transformam-se em espaços de disputa e conflito entre ambos os grupos.
Em relação a esses conflitos há uma separação tendente a formular o meio ambiente como linha divisória entre ambas as formações. Durante os últimos anos, a presença do Estado, através do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (IBAMA) vem organizando estas áreas de pesca12 criando espaços de captura diferenciados para ambos os “grupos”, fortalecendo, porém, a separação entre pescadores que antigamente participavam de ambas as práticas de pesca, e com sua proteção soterrando ainda mais os pescadores de praia sob a categoria de “artesão” e deixando no meio do fogo destes e dos industriais, os pescadores de bote, sem uma definição política que os acolha claramente em termos de suas responsabilidades ambientais. Neste sentido, a introdução dos motores trouxe uma ruptura simbólica entre “categorias de pescadores”, que não corresponde à realidade dos laços sociais na comunidade, imaginada como um todo. Em muitos casos, primos, irmãos, tios ou sobrinhos circulam por ambos os universos colocados em conflito pelas “balizas” instaladas, a partir das políticas de conservação ambiental, por órgãos do Estado, sendo definidas como formas de demarcação de “áreas de pesca” para cada categoria, ilusoriamente contrária em termos de usos tecnológicos.
Ainda hoje como pequenos proprietários que orientam sua produção para o mercado, os pescadores de bote a motor da Ilha – como os de grande parte do litoral brasileiro –, consideram-se a si próprios herdeiros diretos do “modelo de companha” (“associação de camaradas”). Este modelo é uma forma de organização coletiva do trabalho característica da antiga pesca de praia cujo lócus de sociabilidade é o rancho (pesca de praia ou de arrastão). As estratégias de organização e de circulação do conhecimento necessárias às dinâmicas dos ranchos continuam vivas nos botes, tanto por suas virtudes produtivas, como por esses últimos permitirem a re-significação dos valores de sociabilidade e ludismo tidos como masculinos, transmitirem saberes e conhecimentos especializados, solidificarem laços políticos e econômicos, e reconstruírem (colocando-as em risco) lideranças nas novas condições tecnológicas, como, por exemplo, a do comandante sobre a manipulação de motores. Tal é assim que, nas “comunidades” em que a pesca de botes a motor tem se desenvolvido com maior força, nos ranchos onde se guardam os aparelhos dos botes, os proprietários lideram uma “miniassociação de camaradas” – e continuam sendo espaços socialmente reconhecidos pela narrativa cotidiana em termos de transformação – em continuidade com os antigos ranchos de praia. Os “ranchos de bote”, caracterizados por uma vida cotidiana mais “alargada” temporalmente que os “ranchos de praia”, são parte da etnogênese (Sahlins 2006) dos pescadores do litoral de Santa Catarina a partir da introdução dos motores.
UM MOTOR NO BOTE, UMA COZINHA NO RANCHO
Como dito no início, durante vários momentos da pesquisa foram realizados diversos documentários etnográficos com estes pescadores que “voltaram” uma ou duas décadas depois, com novos conhecimentos e habilidades, reorganizando as sociedades litorâneas em torno às unidades familiares de produção pesqueira. A maioria deles mudou para pescadores de bote a motor, e, ainda, tendo recuperado formas de organização – como o “quinhão” – práticas vivenciadas por muitos na infância, considerariam a pesca de arrasto de praia como atividade que pertence “aos antigos”. Saberes como os da marcação no mar,13 desconhecidos na antiga pesca de praia, novas técnicas relacionadas com a pesca da corvina, práticas associadas com as necessidades de coordenar e orientar tripulações, o conserto mecânico dos motores e botes, a manipulação da informação através de rádios, o saber sobre as correntes, foram, entre outros, temas presentes nas imagens produzidas em mar e terra que apareciam como “diferenciais”.14 Como tecnologia de pesca que permitem projetar a relação segurança-insegurança no “mar de fora”, os botes a motor transformaram-se na materialização objetiva que outorgará eficácia simbólica a esses novos conhecimentos,15 desenhando, no imaginário coletivo, as linhas do progresso; “triunfo” que repercute não só sobre a condição de trabalhadores e produtores, mas também sobre um campo da autoridade e do poder comunitário ameaçada pelo movimento entrópico que ele próprio revela.
Acompanhamos a safra da tainha no rancho de pesca da praia da Joaquina, na Ilha, onde os autodenominados “filhos de pescadores” – sintaxe êmica que exprime o processo de transformação – “recuperaram” a pesca de canoa nos últimos dez anos. O modelo de “companha” serve à permanência, no imaginário, de “comunidade tradicional”, objetivado pela vida destas sociedades entre maio e junho de cada ano, quando chega a “safra da tainha”. Observei que o rancho – espaço físico fundamental para organizar o trabalho na “pesca de arrasto de praia” – era um lugar dirigido, não unicamente, à proteção das intempéries e à segurança dos vários instrumentos e aparelhos necessários para a pesca, mas também como um lugar adequado para criar laços sociais produzindo, no dia-a-dia, momentos de sociabilidade muito intensos. Surpreendi-me ao ver que eles também usavam botes de borracha e jet-skis nos dias em que a maré agitada dessa praia dificultava as cercadas dos cardumes que aguardam dia-a-dia, com uma mistura de ânsia e paciência. Durante o mês que precede este período, a vida, nos ranchos que se estendem por todo o litoral de Santa Catarina, floresce, com as famílias que se agrupam segundo suas respectivas praias de referência.
Nos ranchos de praia, a cozinha é o lugar privilegiado para a reafirmação do mencionado igualitarismo masculino. Os longos períodos do círculo cozinhar-comer-descansar dos camaradas no rancho de praia unificam dois processos de reafirmação considerados essenciais para a continuidade da pesca entre os protagonistas deste espaço. Por um lado, a exclusividade da sociabilidade masculina que se realiza como práxis do trabalho, mas também nas formas cotidianas de compartilhar os conhecimentos, tanto da pesca como da vida. Na espera, antes, durante e depois das refeições, nos jogos de dominó ou nas bebedeiras que precedem as frias e longas noites de outono, os pescadores conversam sobre problemas diversos que os afetam. Quase sempre, as discussões e conversas terminavam abruptamente em uma espécie de aposta, na tentativa de predizer o tempo. O patrão deve garantir a reprodução do próximo evento de comensalidade e reorganizar o grupo em permanente dispersão para “caçar” o peixe no outro dia. O portão do rancho, feito de velhas madeiras, aponta ao sul, aguardando de frente a chegada desse vento mágico que tudo explica para eles desde que têm memória; “vento sul”, essa âncora sensível para as categorias de risco e a incerteza, características da pesca em qualquer lugar do mundo. Essas categorias fundam e estruturam as práticas de solidariedade e igualdade, são os “sentimentos estruturantes” de uma sensibilidade coletiva que cresceu precisamente com a expansão dos botes a motor nestas sociedades. A espera, a paciência os ventos e as marés formam um fato coletivo, um componente central no rancho que deve ser alimentado, recriado e colocado em sentido constantemente.
Assim, a centralidade que adquiria para os protagonistas a lenta e dificultosa construção do motor reelaborava o modelo de pesca baseado na organização hierárquica do visível nos longos dias de dispersão-agrupação no “rancho de praia”. O motor funcionava como um totem moderno, capaz de reestruturar certas coordenadas culturais comunitárias entre os integrantes, e atualizar práticas no universo das masculinidades e da jocosidade características dos pescadores. Em grande parte, a necessidade destes espaços “intermediários” nos dois tipos de ranchos (“de pesca” e “de bote”) vê-se refletida na existência de uma série de estratégias comunicativas para efetivar o gerenciamento dos recursos marinhos e terrestres. Os peixes capturados tendem a ser representados como uma espécie de mana e compõem o “complexo simbólico” em que determinados saberes, estratégias de captura, registros hierárquicos, atos performáticos, adquirem relevância e substância transferível. O motor, porém, exigia dos integrantes conhecer novos elementos a serem gerenciados como, por exemplo, o mercado de peças, as negociações com mecânicos, etc. O motor atualizava os mecanismos de transmissão de conhecimentos incorporando novos elementos, ou melhor, elementos desconhecidos do ponto de vista prático e narrativo.
Como dito, tanto os botes e os motores são saberes tecnológicos que se tornaram verdadeiros “troféus”, e, como os descritos por Sahlins (1990) nas ilhas do Pacífico e as grandes metrópoles continentais da Oceania, são integrados ao conceito – oficializado – de “comunidade” como um triunfo coletivo, reinventando formas de coesão, mas também atualizando a identidade comum em unidades domésticas de produção pesqueira fragmentadas. Foi assim, em torno à utilização dos motores e a sua manipulação como conhecimento, que se incorporaram os pescadores como “proprietários” que retornavam dos mencionados périplos de trabalho. Eles atualizaram formas de distribuição dos recursos e das hierarquias de gênero e de gerações em formações sociais mais “modernas” que a “arcaica” comunidade, estabelecendo uma maior e mais constante relação com o mercado da pesca.
Os papéis sociais que emergiam da construção do motor no rancho do Osso de Baleia eram perfeitamente comparáveis aos da cozinha no rancho de praia da Joaquina. Numa tradução da clássica Lévi-straussiana, podemos dizer que motor é para o primeiro o que a cozinha é para o segundo. Introduziria um novo elemento de empoderamento masculino original? Mais ou menos, porque a etnogênese é, precisamente, dialética, ou, em termos interpretativos, negociada por rodelas. Não cabe dúvida de que a cozinha é um lugar central em qualquer rancho de pesca. Ela permite atualizar um tempo masculino de atividade e efervescência jocosa e comunicativa única. Ao tempo de espera, de calma, dormir e dominó, que domina o rancho durante grande parte da safra16 contrasta o tempo de cozinhar. Lembremos, por exemplo, que a pesca de praia requer passar muitas noites nos ranchos de pesca, os quais são espaços constitutivos de uma sociabilidade masculina fora do lar, evocando a vida em um barco de maior porte. Nesse tempo, dominado pela espera do peixe, os homens associados ao rancho se lançam a tomar posições na hora de “fazer a cozinha”, como se fosse parte integral de uma existência autônoma como homens, de um mundo sem lares nem divisões de gênero para além do próprio rancho. A cozinha é um lugar de experimentação dos sabores “masculinos do mundo”, da cachaça, da cerveja e de longas horas de cozinhar os pratos de um cardápio sofisticado. Em poucas palavras, um lugar “sem mulher”. O mesmo acontecia nos botes durante as jornadas de pesca no mar e acontecia nos barcos durante vários dias, a que muitos deles se acostumaram durante as migrações. A construção do motor tinha esse mesmo aroma e temporalidade, e se apresentava para mim como ressignificação da sociabilidade orientada a produzir este mesmo sentido lúdico, permeável a certo caos necessário à criação e invenção de algo que existe, mas pode ser renovado, desta vez, nos ranchos de bote. “Fazer motor” equivaleria a “fazer o rango”.
FEEDBACK E FINAL
“... eu poderia ter arrumado um com Ari ou com Silvio, e teria sido mais em conta, eles teriam emprestado para mim as peças, pago o mecânico para armar o motor... mais eu ficava preso deles... são sempre os mesmos, porque eles eram antes os donos das redes e das canoas... Não? Ai deu a idéia de nós fazer e pagamos o custo de apreender a mexer com o motor do bote...”
Com a substituição da “pesca de arrasto de praia” por parte dos botes a motor e suas extensas redes, transformou-se definitivamente a produção, agora orientada a satisfazer demandas de mercado. Com esta substituição se produz uma exposição radical da figura do atravessador, personagem tradicional central da distribuição dos lucros da pesca nessas sociedades, e quem controla a compra e venda do peixe, dos pescados para o mercado. Os atravessadores são intermediários, constroem cotidianamente as relações de dependência com os donos e comandantes dos botes através de empréstimos para compra de combustível, aparelhos, motores, redes ou para o concerto das mesmas.17 Construir um motor para um bote – na maioria dos casos comprar – formaliza o poder sobre o mundo tecnológico e sobre um “artefato” totêmico da pesca “moderna”. Assim como acontece com o mercado, o motor chega do exterior da comunidade.
O atravessador tem acesso a ele na sua condição de figura que foi responsável “desde sempre” por levar da comunidade para esse exterior os valores simbolicamente produzidos pela “comunidade”, o peixe, e por trazer do exterior outros (tal como aconteceu com a primeira TV ou os primeiros rádios, vivamente presentes nos relatos). Portanto, a construção do motor por parte do comandante e dono do Osso de Baleia supunha ao mesmo tempo uma atualização da relação com o atravessador. Uma atualização da memória histórica desse personagem que tendia a equilibrar as relações de interdependência entre o bote e o atravessador no domínio do controle sobre uma tecnologia. Uma atualização que se monta sobre as formas de produzir sociabilidade, administrar poder nos momentos rituais e gerir os direitos territoriais no mar e na terra. Subjazia a ideia de que o atravessador tinha perdido seu papel “mediador” no campo das relações sociais através de uma “dádiva redistributiva” em favor do poder de coerção econômica sobre os botes como “intermediário” das demandas de um mercado onde a oferta era objeto da sua prática e não mais um sujeito coletivo que representava.
O atravessador aparecia sistematicamente nas conversas durante a longa construção do motor no rancho de bote, o que raramente acontecia no rancho de praia durante os festivos “rangos” do meio-dia. O “problema” era, para os camaradas do rancho, os botes a motor, “concorrentes desleais” e integrantes da “grande família” que teriam perdido nos périplos a outros mares a “moral comunitária” e o “respeito dos antigos”. E durante a construção do motor, apesar de ser objeto de críticas e comentários sobre a “liberdade” que adquiriam no ato de decidir realizar essa aventura tecnológica em conjunto, o atravessador, longe de ser uma simples engrenagem na cadeia de comercialização aparecia como uma verdadeira instituição política que eles desafiavam. Essa instituição se evidenciava como a encarregada de exteriorizar o resultado do trabalho abstrato da comunidade, materializado no “peixe fresco” e “artesanal” dos botes. Daí que esta última categoria seja no fundo o objeto de disputa. Sendo também uma espécie de “receptáculo” ao qual se confia essa identidade para ser intercambiada, o atravessador estava, por sua vez, habilitado a negociar, em nome dela, os valores simbólicos e materiais com o exterior, enfim, no mundo da cidade, ou melhor, no “mercado público do centro”. Trata-se então de uma instituição que opera diretamente sobre as relações de intercâmbio possíveis entre o tradicional e o moderno e se exprimiria em outros universos da pesquisa audiovisual.
Se, por um lado, estavam os “ranchos” de pesca de praia, onde os objetos das narrativas e da memória enfrentavam sutilmente a modernidade, como as mudanças climáticas da orla e os perigos do crescimento imobiliário, ao mesmo tempo percebia-se a atualização tecnológica (jet-ski, motores fora de borda, handys, etc.) como “necessariamente” compatível com o passado dos “antigos”, uma vez que aprimoravam as técnicas de cercada na quebra sem romper as regras do poder e das hierarquias. Para isso, estava precisamente a cozinha e o rancho como universo lúdico de recriação da ordem social. Por outro, estava o rancho do bote Osso de Baleia, sítio em que a trabalhosa construção de um solitário motor acendia narrativas e debates sobre o papel dos órgãos de controle do Estado, do mercado ou da necessidade de projetar os conflitos fora do espaço das praias para o “mar de fora” ou em Ilhas como a de Arvoredo, área antes frequentada por eles, mas onde hoje impera o modelo de normas de proteção ambiental, consideradas por eles como “absurdas”, “injustas” e destinadas a mantê-los em posição liminar entre o moderno e o tradicional. A “sustentabilidade” ambiental é assim uma categoria inconsistente com a realidade da pesca de botes a motor. A projeção comunitária que nele vivia era o salto comunitário em direção à modernidade, mas que o atravessador tinha abortado com as dádivas. “Sustentabilidade” era inconscientemente interpretada como status quo.
Em primeiro lugar, porque, na medida em que o motor não significava apenas “aprimorar” uma técnica, mas aumentar a capacidade do bote de abarcar os “lugares de pesca” - permitindo percorrer maiores distâncias em menos tempo e puxar redes maiores e mais pesadas – a questão conservacionista adquiria uma dimensão política vinculada com a escassez de recursos e com a dinâmica de um mercado particular que os tinha como protagonistas. Por outro lado, “fazer o motor” era um “jogo sério” para os integrantes do Osso de Baleia, já que ele reintroduzia uma tecnologia trinta ou quarenta anos depois recolocando o peso relativo dos atores e papéis tradicionais.
Em definitivo, o motor exprimia no rancho de bote uma tensão central das relações sociais que habita também nos integrantes do rancho de praia: por um lado, a busca por aprimorar a capacidade de concorrência com a pesca industrial e, por outro, os modos em que o domínio de um saber especializado sobre sua tecnologia reforça o poder dos papéis hierárquicos associados com a capacidade política de produzir segurança e proteção para os integrantes da “comunidade” ressignificada em torno a eles.
A introdução – e apropriação – de uma “modesta” tecnologia como a do motor nos botes de pesca não industrial no litoral de Santa Catarina têm histórias, trajetórias e significados tangíveis quando relatadas e re-vivenciadas pelos sujeitos que as protagonizam. Embora os conceitos implícitos nesta relação – sociedades tradicionais, estados, modernidades – possam vir a indicar obstáculos próprios à retórica sobre a validez da sua aplicação especifica, vale dizer que a necessidade de fazer corresponder, analiticamente, à introdução, passada ou futura, de uma determinada tecnologia – como os motores no trabalho da “pesca não industrial” (Godio 2005) – coincide com a necessidade de compreender o lugar que ocupa em termos de experiências nativas originais.
Com efeito, estas experiências chamam às Ciências Sociais a levantar sua voz e deixarem de manter um debate silencioso e pouco explicitado sobre o impacto que a “ciência aplicada” tem sobre seu próprio conhecimento. Refletir sobre as relações culturais que produzem a presença de artefatos tecnológicos – como conceito e independentemente da sua qualidade ou complexidade tecno-científica – nas chamadas “sociedades tradicionais” junto com os atores envolvidos, justifica-se porque reflete no centro da crítica precisa desde o saber próprio do campo. Quando sabemos que os erroneamente intitulados “índios isolados” da Amazônia furtam artefatos dos seringueiros, porém descartam os objetos de plástico por não resistirem ao fogo, alguma projeção sobre as tecnologias, sobre o meio ambiente e sobre “seus outros” está acontecendo ali, na práxis. No outro extremo, há evidências de que o universo comunicativo aberto pala expansão da internet ressignifica as dinâmicas de construção de identidades de determinados grupos de pertença – ou como disse oportunamente Lyotard (1979), as “condições pós-modernas de conhecimento” – é igualmente certo que as atividades produtivas e a organização no trabalho tecnologicamente mediadas em determinados grupos de trabalhadores, impacta sobre as políticas da identidade ancoradas nas práticas da sua atividade produtiva.
Os botes a motor, como o rancho de praia e suas cozinhas, são locus que estruturam e atualizam parte significativa da dimensão masculina, igualitária e cooperativa da pesca entre estes trabalhadores, uma vez que, traduzida na sociabilidade do pescador como “camarada e amigo”, se mantém viva nas práticas cotidianas. As tecnologias e o meio ambiente são objetos privilegiados da última.
O bote a motor é uma “máquina móvel” que contém um espírito de corpo que empreende, todo dia, uma “batalha” contra as condições ambientais e o movimento impreciso dos cardumes, mas também dos grandes barcos industriais e de um mercado que não segue as leis da oferta e a demanda com a lógica que ele “deveria ter”. Entre outros motivos, porque os pescadores nos ranchos de praia conservam e revivem uma organização tecnológica do trabalho em que o “meio ambiente” tem sentido próprio, para a contemplação e para a ação, porém, ao custo de sacrificar os seus irmãos no mar e nos botes em nome de “sustentabilidades” que possivelmente não os defendam.
NOTAS
1 Quiçá, como herança pós-colonial, são as iniciais CTS (Ciência, Tecnologia e Sociedade) as que ocultam um terceiro elemento em discórdia, o mercado capitalista, em que se produzem e instituem como demanda de eficácia, produtividade e consumo.
2 É um fato reconhecível a qualquer pesquisador em ciências sociais que há uma maior qualificação e interesse para a captação de recursos de pesquisa no campo das tecnologias. Campo que, no passado, claramente estava hegemonizado pelas chamadas “ciências duras”. Neste sentido, as diversas formas de abordar estas relações são um campo de ação social e cultural que vem sendo objeto dos mais diversos programas de financiamento e de desenvolvimento dos Estados nos últimos anos. Dito isto, é também visível que não há um acordo explícito – pelo menos nos níveis intermédios do mundo acadêmico-científico – para reinstalá-las como um campo instituído dos grupos estudados. Basta conferir o papel hegemônico das diversas “engenharias” – “bios...” alguma coisa – estendendo o controle das pesquisas em laboratórios para o campo de ação a que os recursos tecnológicos se atrelam, e o lugar privilegiado que ocupam nos programas orientados ao desenvolvimento de novos instrumentos produtivos e de comercialização de bens. Durante o último ano, a Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação de Santa Catarina destinou várias centenas de milhões de reais a projetos e bolsas diretamente orientados à pesquisa em ciência e tecnologia.
3 Pergunto aqui à minha amiga, a antropóloga Barbara Arisi, se a recuperação destes sujeitos pela antropologia tem as sociedades indígenas como “objetos ideais”. Ou como ela gosta de dizer: “A Amazônia é um laboratório dos gringos, meu velho”.
4 Letras iniciais para se referir aos estudos de e sobre Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS).
5 Esta perspectiva agiria como uma via possível de des-naturalização da categoria “artesanal” porque reacomoda os sujeitos em torno a uma discussão política de ordem planetária e ambiental mais ampla.
6 A categoria de “pesca artesanal" precisa de uma discussão específica, pois ela é construída numa certa liminaridade entre a visão romântica e conservadora que define estes trabalhadores como “gente do mar” e a visão que os coloca numa posição de “atraso”, caracterizada como “economia de subsistência”. A condição de “reservistas de segunda” da Marinha reafirma esta posição liminar duplamente estigmatizada pela visão oficial.
7 O rancho é uma construção precária – geralmente de madeira – que permanece nas praias do litoral com a finalidade de servir de vivenda aos pescadores e de guardar os aparelhos de pesca (botes, redes, boias, etc.) durante as diversas safras. Em Santa Catarina, estes ranchos adquirem sua função especial como espaço de trabalho e de vida durante os meses de maio e junho quando as praias são dominadas pelas “cercadas de tainha”.
8 Decisivamente, entre os pescadores, essas definições incluem prioritariamente as fronteiras e fluxos nas relações de gênero a partir dos quais se organiza o trabalho como “ordem moral”. Evidentemente, as formas de parentesco e a divisão dos papéis no household são o primeiro aspecto antropológico visível para a abordagem na perspectiva interpretativa de uma “ordem negociada” das relações de gênero presentes nas unidades familiares e comunitárias de produção pesqueira. Mas, como afirmava Godelier (1974: 204-205), será necessário ir além dos aspectos simbólicos desta relação para observar suas condições sociais de produção, já que são elas “que determinam o papel relativo do grupo doméstico no processo social de produção, a presença ou ausência de formas de divisão do trabalho que ultrapassam os limites dos grupos domésticos e das comunidades locais”.
9 Depois da década de 1960 diminuíram substantivamente as mortes no mar.
10 Evidencia-se, especificamente no interior da atividade, o crescimento de uma situação cada vez mais conflituosa e de concorrência entre os botes. Este fato tem expressão no passado imediato destas comunidades cada vez mais fragmentadas no que se refere a suas unidades produtivas. Criam-se, assim, novos cenários de conflito entre grupos de pescadores que originariamente pertenciam “a uma unidade de produção composta pelos membros de uma ou mais famílias aparentadas” (Diegues 1983:123).
11 Por momentos, confusa, obscurece a “escassez” de uma mise-en-scène de abundância, requerida para sua eficácia simbólica. O processo de distribuição, por vezes, parece confuso e tenso, talvez pelo grande número de pessoas reunidas em torno ao acontecimento “milagroso” da abundância, mas também porque devem transformá-lo em uma operação marcada por certa “justiça” em relação aos que receberiam uma porção do peixe. Esta “justiça”, evidentemente, correspondia a uma série de valores e a uma “sensibilidade legal econômica” que estrutura a noção de sociedade, como diria Clifford Geertz.
12 As “áreas de pesca” são extensões demarcadas de acordo com a profundidade, a composição do fundo do mar e os tipos de peixe que a habitam. Esta forma de distribuição básica do território marinho é praticamente universal entre populações de pescadores. Este é um aspecto de grande importância para a atividade porque se refere à distribuição dos espaços de pesca e também aos chamados “direitos de pesca”, isto é, aos mecanismos de controle territorial e, portanto, das espécies marinhas que habitam e circulam por estes espaços. Tais direitos definem o acesso aos territórios e aos seus produtos, sendo igualmente lugares simbólicos para dirimir situações de conflito, concorrência e cooperação entre os pescadores.
13 A relação do pescador com o mar é uma relação quadridimensional. É muito mais complexa que a relação que um trabalhador tem com o cultivo da terra (relação que inclui ele próprio, o campo e o céu). O pescador está obrigado a acrescentar um quarto elemento, que é exatamente o mar e sua indeterminação. Este é um elemento móvel e imprevisível. Isso faz com que o pescador desenvolva mecanismos de conhecer esse mar e transmitir esses conhecimentos dia a dia, e “gerar” (no sentido amplo) os espaços de sociabilidade para isso acontecer. Qualquer pescador sabe disso. Ele deve saber interpretar os indícios da natureza, a presença dos pássaros, a cor das águas, os diferentes ventos, os “vermelhões” das tainhas.
14 Vídeos produzidos pelo NAVI-UFSC: Homens e Mulheres de Mar e Terra (2004), Caminhos da comunidade (2005), Brasilio (2005), O torneio (2006), O motor (2009), Rilheiros (2010), entre outros.
15 O saber e o conhecimento náutico, a identificação das condições ambientais em relação ao movimento das espécies, a habilidade para enfrentar com sucesso situações de risco (com mais risco ou com mais prudência) e, em particular, a competência do comandante para “marcar” o lugar da pesca (quer dizer, criá-lo), são todas operações que entram na prática do segredo como habitus estruturante. Esta última, como operação maior, que abrange as outras, ao ser manipulada corretamente, acompanha os movimentos de contração e expansão do círculo da parentela.
16 Quando a safra avança, os barcos descarregam o peixe nos trapiches. Diariamente, um grande número de homens, e em menor quantidade, algumas mulheres, alternam-se ritmicamente, de acordo com a chegada de cada bote, segundo a relação mais próxima dessas pessoas com seu comandante, a tripulação e o dono. É justamente no momento em que o peixe é presenteado – pelas mãos do próprio pescador – que se reforçam laços de amizade e camaradagem (por exemplo, com os pescadores já aposentados). Esse “peixe fresquinho”, que ainda “conserva” uma parte do pescador, com suas mãos marcadas pelo trabalho e da alma intacta da tainha vencida na luta no mar.
17 O atravessador não é apenas um componente prático na criação de regras de solidariedade e intercâmbio: ele age dando continuidade, na vida em terra, à indeterminação na qual se inscreve a sua identidade como membro do grupo de trabalhadores do mar, por assim dizer, uma dissolução simbólica da fronteira entre mar e terra que funciona como mecanismo de adaptabilidade a um mercado altamente flexível e cambiante. Ana Maria Teles (2002) observa, na sua etnografia, que “dos quatro tripulantes fixos, três pescadores são parentes (cunhados), incluindo o proprietário”. Quando ela comenta que todo mundo era “meio parente”, um deles a corrige: “Não, se tu tirar o pessoal de fora, a Barra é uma grande família” (Teles 2002: 119). A figura do atravessador geralmente faz parte do circuito de relações do household.
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Recebido em 05/03/2012.
Aprovado em 02/08/2012.
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