Ecologia Política
Resumo
A ideia de ecologia está relacionada a um conjunto de referências sobre um determinado lugar. Ecologia, para quem vive em uma floresta, é floresta viva a respirar e a inspirar: a vida da floresta é o suporte para a materialidade e a espiritualidade da existência, da cultura e da produção/reprodução da subsistência. Essa existência comum entre sujeitos coletivos e o lugar é desgarrada da Terra pela violência colonial, um processo político e marcado pela relação assimétrica de poder que caracteriza a expansão/conquista do capitalismo. A violência colonial atinge as pessoas — não percebidas aqui como "indivíduos"—, e rompe com a percepção do coletivo ao mesmo tempo que constrói a individualização. O sujeito individualizado resulta do desmembramento do humano da relação com o lugar como suporte da vida. A ecologia política, pela epistemologia contra-hegemônica que propomos, é um projeto que reconstrói essa relação entre sujeitos coletivos e a existência orgânica em comum; expõe as estruturas assimétricas de poder que atingem essa relação comum sujeito/ambiente e promovem a individualização/espoliação, com a apropriação do trabalho e das formas ecológicas de subsistência com a construção de um "eu-saqueador"/"eu-aniquilador", tal como a crítica ao indivíduo patriarcal ocidental "sou, logo conquisto", de Enrique Dussel, e "sou, logo extermino", de Ramon Grosfoguel. O individualismo separado das relações ecológicas com o lugar é a promoção do encercamento, da privatização e apropriação dos projetos coletivos de existência em um planeta comum.
Gente, lugar e jeito de estar no lugar compõe um todo. A violência da divisão abissal que marca a colonialidade do mundo, como escreve Boaventura de Sousa Santos, incide sobre os sujeitos coletivos e sobre o lugar como suporte da vida: desmembra, desgarra, desterra. Esse distúrbio cria desequilíbrio e doenças, libera uma condição que Davi Kopenawa, um xamã Yanomami, denomina de xawara, doença. Essa potência/doença esta contida em um lugar em equilíbrio, que liberada emana estados de doenças, que se manifestam no corpo das pessoas como enfermidades: as pessoas ficam loucas, deprimidas, além de outras manifestações físicas de doenças na pele, respiração.
A ideia da natureza separada dos sujeitos coletivos é resultado dessa violência colonial abissal como um desequilíbrio ecológico. Para uma epistemologia do sul, ecologia é uma ideia que nasce no Norte, e que é colada nos povos do sul como uma carapaça. A ideia de ecologia é dos Brancos. Assim como a Natureza resulta da separação dos sujeitos coletivos do seu lugar de existência por uma interferência externa, violenta, a partir de uma relação desigual de poder. A expressão do poder na apropriação da “Natureza” constrói uma expropriação tão radical que nos joga todos na condição de miseráveis e pobres: empobrece a paisagem e as pessoas. O garimpo, e aqui faço uso da ideia geral do garimpo, seja o garimpeiro que invade o território yanomami, ou a grande corporação/BHP-Samarco-Vale que garimpa as montanhas e aniquila uma bacia hidrográfica em Minas Gerais, o garimpo como o saque, constitui um lugar de poder para os agentes, mesmo os agentes locais do saque. Agentes locais do saque não precisam necessariamente permanecer nesses locais de destruição/predação. O colonialismo do poder permite que os agentes se posicionem e não precisem viver na margem de um rio morto. O desastre que produz essa separação do sujeito com o ecossistema, para a apropriação da Natureza, constrói olugar do outro. A diferença abissal constrói o lugar do outro — separado da sua existência com o lugar—, e o lugar de dominação ocupado pelo sujeito de poder. Este é um lugar de mobilidade, do lugar nenhum ou qualquer lugar. Há uma separação espacial das relações de poder e do lugar da exploração pela violência abissal do colonialismo.
Cinco séculos de extrativismo predatório contínuo em vastas regiões do Sul global foram marcados pela construção de uma epistemologia hegemônica capaz de aniquilar qualquer pensamento alternativo que colocasse em questão esse extrativismo gerador de miséria humana. Com isso, agentes do saque também saem do meio dos saqueados. A epistemologia do saque faz com que do meio das comunidades que são despojadas e expropriadas também saiam sujeitos que tiveram origem nos lugares que foram destruídos, de forma que estes sujeitos dessa violência sejam capazes de reproduzir a violência, e integrar essas práticas como uma ferramenta de afirmação do projeto extrativista colonial. A cultura garimpeira se constituiu num grande animador desse projeto de saque ecológico pela mentalidade que alimenta, justifica e legitima localmente esse processo de desterrar e desgarrar.
A identidade do garimpo naturaliza na cabeça das pessoas o desterro e a predação da paisagem em uma ecologia predatória. Os agentes desse processo que saíram deste mesmo meio, são capazes de devolver uma justificativa do que acontece e justificar que era preciso matar o rio ou assassinar a montanha como uma logica de desenvolvimento local. Esses agentes produzem uma tradução da epistemologia hegemônica, para se fazer aceita a lógica colonial do capital.
Pertencer ao lugar é uma forma de romper com esse ciclo do oprimido que vem a ser opressor. Indígena é aquele que vem do lugar. Ser do lugar marca a diferença do não- lugar. O sujeito coletivo pertence ao lugar, é o oposto político do lugar que pertence ao indivíduo. Os Kaiowa Guarani lutam pela terra porque pertencem à terra, não porque a terra pertence a eles; a terra não pertence a ninguém. Para o indígena da terra, não há outro lugar, não há outra ecologia. Frente à despossessão, a espoliação e expropriação do desterro da relação ecológica com a Natureza, proteger a terra tem o sentido da existência. O lugar transcende a Natureza em sua percepção como recursoe alcança a dimensão da existência como o sagrado. O lugar espiritual é onde a terra descansa, e se o lugar é sagrado é em razão da transcendência da Natureza da percepção como recurso.
Palavras-chave
ecología; epistemología do sul; descolonização dos saberes
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PDFDOI: http://dx.doi.org/10.18542/ethnoscientia.v3i2.10225
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