PREFÁCIO
Resumo
Atreladas a uma Sindemia Global, na qual articulam-se as epidemias de desnutrição, obesidade e mudanças climáticas, desigualdades e vulnerabilidades de distintas sociedades foram se consolidando ao longo dos anos. Intensificadas pela crise sanitária decorrente da Covid-19, tais desigualdades e vulnerabilidades, por um lado, enfatizam os limites de um modelo de desenvolvimento puramente economicista e, por outro lado, fortalecem a importância de uma sensibilidade agroecológica na construção de sistemas alimentares mais territorializados como estratégica na superação desse modelo de desenvolvimento.
Em distintos recantos da América Latina e do Caribe, a agricultura high tech, ou 5.0, vem sendo imposta com o argumento de impulsionar essas regiões a consolidarem-se como as maiores produtoras e exportadoras de commodities do globo. Entretanto, nesses cenários, coexiste com o denominado ‘progresso’ a dificuldade de acesso a alimentos em quantidade e qualidade adequadas por boa parte da população. Na esfera ambiental, assistimos a desastres climáticos, sabidamente catalisados pela manutenção de uma ideia hegemônica de desenvolvimento econômico que, consequentemente, invisibiliza a sociobiodiversidade.
De forma contra-hegemônica, evidenciam-se múltiplas experiências, pautadas em etnossaberes e práxis agroecológicas, potencializadoras do reequilíbrio das forças que estimulam dietas mais saudáveis, priorizam o uso da terra para uma agricultura justa, limpa e sustentável e reduzem substancialmente as emissões de gases de efeito estufa. Mais precisamente na América Latina e Caribe, pulsam pesquisas que resgatam, dialogam e valorizam experiências das mais diversas formas de relações entre os seres humanos de diferentes sociedades e a natureza, com atenção especial para saberes e práticas agroecológicas, na perspectiva do “Bem Viver”. Justamente com a proposta de evidenciar tais formas de construir e partilhar conhecimento nos mais diferentes contextos da América Latina e Caribe, este dossiê apresenta desde artigos de embasamento mais teóricos até relatos de experiências.
O artigo intitulado “Sai gordura trans, entram vegetais orgânicos”: seriam as lógicas taylorista e fordista dos fast foods com tempero de pós-modernidade?”, de Monique Medeiros, utiliza a pesquisa bibliográfica com o intuito de responder às questões: quais os motivos que levam os consumidores a procurarem alimentos mais saudáveis? O que motiva a incorporação de alimentos orgânicos nos cardápios de fast food? O que significa associar alimentos orgânicos a uma lógica de comercialização e distribuição de produtos alicerçada a uma organização empresarial taylorista/fordista?
Por sua vez, o artigo “El policultivo de cacao (Theobroma cacao L.) y la cultura qato’ok de Tuzantán, Chiapas, México. Una aproximación etnoecológica”, de Ronny Roma Ardón, Anne Ashby Damon e Wilber Sánchez Ortiz, tem como objetivo de determinar, a partir do enfoque etnoecológico, os conhecimentos associados ao policultivo de cacau do povo Qato’ok de Tuzantán, Chiapas, México. Os autores documentam o conhecimento atual, bem como suas mudanças históricas, como forma de explorar as relações entre o cacau, como espécie local, cultivada e promovida, e o ecossistema circundante, outras culturas e espécies introduzidas, como parte de diversos sistemas alimentares que têm caído em desuso. Este trabalho traz novos conhecimentos sobre um sistema pouco estudado na literatura agroecológica, mas de grande importância para a recuperação de dietas diversas e para a promoção do manejo integrado das florestas onde se desenvolve.
O artigo “Agricultura tradicional amazônica: sistemas de cultivo huni ku? da Terra Indígena Kaxinawá de Nova Olinda, Acre, Brasil”, de Tomaz Ribeiro Lanza, Lin Chau Ming, Moacir Haverroth e Almecina Balbino Ferreira, tem como cerne caracterizar os sistemas de cultivo e práticas agrícolas utilizados por famílias indígenas consideradas essencialmente agroecológicos. Os autores relacionam tais sistemas e práticas, embasados por conhecimentos tradicionais associados, com a manutenção da biodiversidade local e regional e com a soberania alimentar. O artigo “Home gardens in Latin America: wild foods in the mesoamerican Ekuaro of P’ure?pechas, Mexico and the andean Chakra of Kichwas, Ecuador”, de Tania González-Rivadeneira e Radamés Villagómez-Resendiz, documentou, a partir de uma pesquisa etnográfica, a relação entre a diversidade de alimentos silvestres e a soberania alimentar na Mesoamérica e nos Andes, considerando aspectos da mudança cultural, e visando contribuir com a discussão sobre alimentos que se situam em um continuum entre o selvagem e o domesticado.
O artigo “La integridad científica y el patrimonio biocultural derivado de la investigación etnocientífica como elemento de justicia social, sostenibilidad y democracia”, de Edgar Oswaldo Pineda Martínez e Paula Andrea Orozco Pineda, a partir de uma pesquisa etnobotânica envolvendo plantas medicinais de comunidades étnicas do departamento del Meta, en la región de la Orinoquia colombiana, investiga os conhecimentos tradicionais ancestrais para propor um código de boas práticas para a colaboração etnocientífica e a conservação do patrimônio biocultural a partir de princípios etnoecológicos que garantam a justiça social. Os autores defendem mecanismos de ética, bioética e integridade científica frente ao patrimônio biocultural de comunidades étnicas.
O relato de experiência apresentado no trabalho “Feira na palma da mão: uma plataforma digital para a venda direta dos produtos da agricultura familiar”, de Luiz Carlos Bricalli, Fabiane de Souza Correia, Joelma Carvalho Barbosa e Nathalia Messina Zouain, enfatiza como uma ferramenta digital pode apoiar a inovação social ao facilitar comercialização dos produtos de agricultores familiares do estado do Espírito Santo, aproximando tradição e tecnologia contemporânea.
Já o outro relato de experiência intitulado “Ações do Projeto ArticulaFito: implementação de sistemas agroflorestais voltados à inclusão produtiva, à saúde e à qualidade de vida na aldeia Aldeia Koyakati - Terra Indígena Mãe Maria – Bom Jesus do Tocantins-Pará”, de Nina Lys Nunes, Albertina Silva, Keylah Borges, Daniella Vasconcelos, Valcler Fernandes e Joseane Costa, propõe uma reflexão sobre os desafios, resultados e questões decorrentes da implementação de ações do projeto ArticulaFito, desenvolvido no norte do Brasil. Dentre os desafios evidenciados pelos autores estão os condicionantes e determinantes sociais da saúde indígena. Buscando a diversificação da produção e alimentar, o trabalho relata a implementação de uma unidade de experimentação agroecológica na aldeia e conclui que a estruturação de cadeias de valor baseadas em sistemas agroflorestais se apresenta como uma alternativa viável para promover a inclusão produtiva dos povos indígenas e comunidades tradicionais, com vistas à promoção da saúde e da qualidade de vida.
O relato de experiência formativa intitulado “Saberes agroecológicos e etnoecologia na educação do campo em tempos de pandemia”, de Thiago Leandro da Silva Dias, se ocupa de uma socialização do processo de pesquisa-ação concebido e desenvolvido no contexto remoto de formação de professores(as) do curso de Licenciatura em Educação do Campo com habilitação em Ciências da Natureza da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB).
E, por fim, o relato de experiência “Trocas de experiências e saberes sobre agroecologia na comunidade São João XXIII, Uruará, Brasil”, de Jaynne da Silva Quanz, Carla Giovana Souza Rocha, Maristela Marques da Silva e Elias Soares da Silva, nos convida para uma reflexão sobre concepções e práticas agroecológicas de camponeses, como caminho propositivo de metodologias que visem aprimorar ações educativas agroecológicas na região da Transamazônica, Sudoeste do estado do Pará, a partir de uma ação realizada no curso de Licenciatura em Educação do Campo da Universidade Federal do Pará.
De modo geral, o conjunto de textos aqui explicitado se volta à evidenciação da preponderância dos sujeitos sociais na construção de formas mais territorializadas de desenvolvimento, de sua organização para superação de adversidades das mais distintas conformações, e, sobretudo, de sua reflexão crítica e construtiva para a consolidação de saberes agroecológicos e sistemas alimentares na América Latina e Caribe.
Esperançosos de que esses trabalhos sejam potencializadores de ideias, práticas e trocas de conhecimentos, lhes desejamos uma boa leitura!
DOI: http://dx.doi.org/10.18542/ethnoscientia.v7i4.12911
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